17 maio 2014


Circo permanente de Santana

Naquela tarde, na minha Santana, o vereador Conde Porto, que nos cochichos chamamos Conde Morto, e o prefeito Di Biasi (este sim com passagem pela morte*) tramavam mais uma contra o povo de Santana. Debochavam de nós os cretinos. Para dar lugar a uma praça superfaturada, notificaram o circo permanente de que a licença mensal custaria o dobro e que a prefeitura deveria receber porcentagem da bilheteria pra compensar o uso de iluminação pública noturna. Tomassem nota e providenciassem o pagamento já na semana que vem. O circo permanente decidiu partir. Quem mais tem sofrido, ironicamente, é a ex-viúva de Di Biasi, saudosa de Pipoquinha e Paçocão, palhaços que nas noites em que o prefeito se ausentava faziam a alegria da enxuta. Dos dois seres coloridos e serelepes - que ela bem conhecia desnudos e naturais, ambos e ao mesmo tempo - restou a lembrança dos malabares. Dos movimentos exatos, divertidos e graciosos.

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*Em 2010 Di Biasi foi enterrado pós-infarto, sob comoção do povo. No dia da eleição do novo prefeito, reapareceu misteriosamente e reassumiu o posto.

#reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão

10 maio 2014


Ponte

Mesmo com o cansaço e o conhaque, o lamentar incessante de Juan, a névoa, o motor e os pensamentos ainda embaralhados, Nigro podia ver a ponte. A sua cidade parecia entrar para a água, depressiva como ele. Estava arrepiado - talvez fosse febre - e dolorido. Sentia raiva porque, enfim, descobrira-se covarde. Verdadeiro idiota. Ver a ponte não o fazia esquecer, mas era o indício de que a esperança estava para voltar.

#reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão

06 maio 2014

Os Ferreira

Os Ferreira acordavam cedo, mas só levantavam quando os Paiva Silva faziam qualquer barulho do lado de lá. Não podiam passar por preguiçosos e logo havia cheiro de café até a varanda - nem que fosse preciso desfilar o bule na casa inteira. Ao ouvir o chuveiro dos Paiva Silva, já se orgulhavam do banho tomado, do rádio ligado, do vai-e-vem dos meninos. E corriam pra chave deles, dos Ferreira, ser a primeira a tilintar na fechadura. Um dia os Paiva Silva vão notar que não estão sozinhos no bairro. Um dia.


#reveza2x2 - conto de Liana Aragão - ilustração de Solange Pereira Pinto

02 maio 2014



Joyce

Já não era tão menina. E não se via mais menina. Tinha emprego e cartão de crédito, carro e namorado, opiniões contundentes e alunos. Colecionava suvenir de viagens internacionais e mantinha um urso da infância e a mania de escrever diários. No último dia 30, completara quatro décadas. Número nada assustador pra quem é muito boa em dar conselhos e aproveita, com a mesma intensidade e entrega, o colo da mãe Madalena - que fora sua babá e até hoje lhe penteia os cabelos e prepara sopa de abóbora. À mãe Josiane cabe a culpa pelo apego da filha, figura grandona - tão adulta quanto desajeitada -, que ainda não se desfizera de dengos e nem mesmo da cama infantil.

#reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão