30 julho 2019


Conspiração

Então era isso? A má fama das previsões meteorológicas só existe porque damos mais atenção a erros do que acertos? Grande bosta. Pra que esse anúncio todo com tom de mistério na aula passada? Eu sou ingênua demais ou o quê? É por essas e outras que não dou confiança pra professor. Fiquei esperando uma grande teoria conspiratória, de elites científicas, intelectuais e econômicas tramando a frequência e o conteúdo dos anúncios de clima, que se acessa todo dia por jornais e TV. Nada.

Ainda indignada pela aula pouco proveitosa, desci do ônibus e vi que a Jô estava desocupada.

- faz meu pé, Jô?

- hein?

Apontei pro pé ressecado e mal cuidado.

- faço, bora.

- mas só posso pagar amanhã.

- hein? Amanhã? Tá.

Com os pés na água fria, a cabeça virada pra trás, perguntei à Jô o que ela achava da meteorologia. Meio surda e com o agravante do barulho do salão, Jô me deu um sorriso de resposta. Só. Comecei a cochilar.

- Sonhei com tatu.

- Pois eu sonhei com o Iramar. Alguém passava uma faca na barriga dele, assim, ó. Ele...

- Um monte de carne de tatu numa bacia, ó.

- ... ele tava me protegendo não sei de quê. Só sei que a gente corria...

- E eu sonhei foi com porco. Entrava lá em casa e corria pra debaixo da cama.

- ...não tinha nem sangue nem nada.

- Vê aí o que deu no bicho, Neide.

- ...vou até ligar pro Iramar, coitado.

- Porra, deu cavalo na cabeça e eu tinha sonhado com cavalo.

- E galinha?

- Galinha saiu no terceiro prêmio... Nada de tatu, Tônia.

- Vou é fazer o milhar.

- Como é milhar?

- Ei, Jô, Mari, Lúcia, quantas vezes eu já expliquei o milhar pra Neide?

Risos.

- ... o Iramar não atende. Tô  é preocupada.

- E porco, deu?

- Deve ter jogo acabando agora. Vê aí, meu 3G acabou.

- Hoje já não foi?

- São cinco por dia.

- Neide, ó o Iramar ali, no rumo de casa.

- Iramar! Iramar!

- Cinco?

Jô acabou de cutucar. Pintou de rosa claro sem eu dizer. Achou que eu tava dormindo.

- Obrigada, viu? Amanhã eu passo pra pagar.

- Oi? Tá certo. Cuidado aí, mulher, com a unha. Tem poça.

Poça? Choveu na meia hora que eu deitei o pescoço na cadeira, pra ouvir sonolenta uma aula inteira de jogo do bicho. Aula que enfim valeu a pena. Chuva rala, pelo visto, com barulho abafado pelo bafafá do salão. E o que diz a meteorologia sobre umidade em Brasília em julho? Seca. Conferi no celular: 32% de umidade. Sorri pra elite que me observava por alguma câmera secretamente posicionada. E pisquei, cúmplice, por participar, a contragosto, da conspiração que eu já desmascarara há anos.

20 fevereiro 2019



Las Ramblas


Finzinho de verão. Enfim, nas Ramblas, eu desfrutava de merecidas férias num bar, com a vista de uma praça. 

Sou um cara bonitão e, com aqueles trajes em linho, tintas, óculos escuros e cigarros mentolados, senti que pareceria ainda mais atraente. Logo alguma moça me dirigiria olhares suplicantes. Era meu devaneio. Sozinho há seis meses, não conseguia me desfazer da raiva e da inveja de Joice, que devia ter vindo pra Barcelona comigo. E me sentir bonitão assim e ali era a minha vingança.

Era cedo para beber, então pedi um café, enquanto tirava o material da bolsa.

- ¿italiano?

- no. Soy brasiliano.

- no – impaciente e dando um tapa na testa – ¿café italiano?

- ah... yes... sí... grazie – enrubescido.

Pedi também um copo d’água pra aquarela. Tracei uma árvore. Outra. A lateral de um prédio antigo. A porta. Misturei preto, vermelho e azul, em busca de um marrom aproximado. Faltava amarelo.

Ele chegou ao meu lado, me apontou uma pistola – ou o que eu supus ser uma – e cochichou: todo. Queria tudo. Entreguei minha carteira, minha bolsa com passaporte. Hesitei, mas lhe dei moleskine, paleta, pincéis e até o copo d’água, que ele me devolveu em seguida. Pegou o meu iphone 4C, examinou rapidamente e me devolveu. Sumiu.


Consegui entender o garçom dizendo que não iria me cobrar o café, mas que eu não podia ficar ali. E ele tinha pressa.

A raiva de Joice desapareceu. E passei a sentir inveja dos turistas que sabiam, ao menos, o endereço do hotel.

13 julho 2018



Seu Manoel

Já sentado, virei para encarar o tronco da árvore, de lado pra pista, e escolhi falar baixinho para não chamar atenção. Não me importo se me olham ou se incomodo os outros com minhas conversas. Não suporto é que me incomodem: "ei, doidinho", "olha ali o louco falando sozinho". Ou, de quem pensa que me conhece: "ó lá o seu Manoel de novo". Interrompem meus raciocínios. Cada um tem sua vida, seus assuntos. Se saio de casa é pra evitar que meus filhos me abordem. Antes mesmo do café, visto as calças, o jaquetão e desço a praça da 36, depois a rua, depois a outra rua. Lá estão meu banco, minha árvore e meus assuntos. Vida/morte, espiritualidade, receitas de milho, mecânica de automóveis, aeronáutica, futebol, vôlei, basquete, Brasília de 1960, botox, cisternas, rock, egoísmo, dor de estômago. Tudo é tratado, apresentado e esmiuçado. Passou um rapaz correndo de camisa laranja, que achei horrorosa. Mas hoje eu dizia sobre tecnologia, avanço da medicina, próteses ortopédicas. Um moço com perna postiça será que corre assim? E é assim que acontece e é assim que é o mundo.

17 maio 2014


Circo permanente de Santana

Naquela tarde, na minha Santana, o vereador Conde Porto, que nos cochichos chamamos Conde Morto, e o prefeito Di Biasi (este sim com passagem pela morte*) tramavam mais uma contra o povo de Santana. Debochavam de nós os cretinos. Para dar lugar a uma praça superfaturada, notificaram o circo permanente de que a licença mensal custaria o dobro e que a prefeitura deveria receber porcentagem da bilheteria pra compensar o uso de iluminação pública noturna. Tomassem nota e providenciassem o pagamento já na semana que vem. O circo permanente decidiu partir. Quem mais tem sofrido, ironicamente, é a ex-viúva de Di Biasi, saudosa de Pipoquinha e Paçocão, palhaços que nas noites em que o prefeito se ausentava faziam a alegria da enxuta. Dos dois seres coloridos e serelepes - que ela bem conhecia desnudos e naturais, ambos e ao mesmo tempo - restou a lembrança dos malabares. Dos movimentos exatos, divertidos e graciosos.

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*Em 2010 Di Biasi foi enterrado pós-infarto, sob comoção do povo. No dia da eleição do novo prefeito, reapareceu misteriosamente e reassumiu o posto.

#reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão

10 maio 2014


Ponte

Mesmo com o cansaço e o conhaque, o lamentar incessante de Juan, a névoa, o motor e os pensamentos ainda embaralhados, Nigro podia ver a ponte. A sua cidade parecia entrar para a água, depressiva como ele. Estava arrepiado - talvez fosse febre - e dolorido. Sentia raiva porque, enfim, descobrira-se covarde. Verdadeiro idiota. Ver a ponte não o fazia esquecer, mas era o indício de que a esperança estava para voltar.

#reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão

06 maio 2014

Os Ferreira

Os Ferreira acordavam cedo, mas só levantavam quando os Paiva Silva faziam qualquer barulho do lado de lá. Não podiam passar por preguiçosos e logo havia cheiro de café até a varanda - nem que fosse preciso desfilar o bule na casa inteira. Ao ouvir o chuveiro dos Paiva Silva, já se orgulhavam do banho tomado, do rádio ligado, do vai-e-vem dos meninos. E corriam pra chave deles, dos Ferreira, ser a primeira a tilintar na fechadura. Um dia os Paiva Silva vão notar que não estão sozinhos no bairro. Um dia.


#reveza2x2 - conto de Liana Aragão - ilustração de Solange Pereira Pinto

02 maio 2014



Joyce

Já não era tão menina. E não se via mais menina. Tinha emprego e cartão de crédito, carro e namorado, opiniões contundentes e alunos. Colecionava suvenir de viagens internacionais e mantinha um urso da infância e a mania de escrever diários. No último dia 30, completara quatro décadas. Número nada assustador pra quem é muito boa em dar conselhos e aproveita, com a mesma intensidade e entrega, o colo da mãe Madalena - que fora sua babá e até hoje lhe penteia os cabelos e prepara sopa de abóbora. À mãe Josiane cabe a culpa pelo apego da filha, figura grandona - tão adulta quanto desajeitada -, que ainda não se desfizera de dengos e nem mesmo da cama infantil.

#reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão

29 abril 2014

João Cesário em festa

Não considerava fácil ter sob seus cuidados e caprichos a menina mais bonita do lugar. João Cesário nem conseguia curtir o rebolado da dona das pernas de boneca, naquela noite com um short branco, brincos dourados grandes e disposição. O suor já lhe fazia brilhar no pescoço e realçava os olhos pintados. Ela cantarolava o pagode e João Cesário se concentrava na marmanjada, os outros, os mulatos que ousavam jogar olhares pra ela. Pronto pra qualquer abordagem, resposta a um ato desrespeitoso mínimo que fosse, desejador de sangue. João Cesário em festa. E fúria.


#reveza2x2 - conto de Liana Aragão - ilustração de Solange Pereira Pinto