31 março 2012

90/365
Karla

Era uma da manhã e acordei sobressaltada, ainda no voo interminável. Desta vez, vi um pôr do sol surreal, laranja, mas não tão iluminador. E focos de fogo espalhados pela terra. Não era fogo - mas luzes de propriedades rurais próximas umas das outras (feudos hoje em dia?), depois percebi. Não era sol. Talvez uma lua cheia ou um disco voador. O avião parou no ar. Planava. Voltei a dormir.

30 março 2012

89/365
Dona Neide

Quando viva, era a piada da turma. Os garotos a perturbavam até que ela explodisse em berros. Abria a porta de casa e expulsava com rodo em punho os que cantarolavam pilhérias, tocavam a campainha ou lançavam nomes feios. Era muda – não podia rebater. Os apelidos “Velha Azeitona”, “Carcaça” e “Maria Paçoca” eram respondidos com uivos e gritos de horror. De longe, eu via uma boca escura de poucos dentes. Diziam que ela não tinha língua. A vizinhança se dividia, ora por não tolerar a algazarra, ora por – calada – espiar curiosa das janelas ou mesmo estimular os garotos. Ela não recebia visitas. Passava o dia a limpar a casa, a arrastar móveis e a cuidar do jardim. Às vezes, gosto de imaginar o que falaria se pudesse. Talvez retrucasse; talvez até agradecesse o movimento vespertino de uma vida tão monótona. Ouso apostar que, agora, a sete palmos, sente saudades dos garotos.

29 março 2012

88/365
Talita

A voz é tão bonita, altiva, lúcida e inteligente. A risada revela uma falsa recatada, gostosona e segura de si. Nada daquele falso sensualismo ou da sem graceza de uma voz comum: me apaixonei imediatamente e já não posso despertar sem o seu “bom dia”. Desenhei imaginativamente uma mulher grandona de cabelos negros e longos, olhos certeiros, com mãos finas e unhas feitas, esperta, agradável. Agora, porém, arregalo os meus olhões diante da imagem dela na internet – Talita Valadares, radialista da Alvorada News AM, mede 1,5m, é magricela, nariguda, muito branca, tem uma boca larga, cabelos oleosos e mirrados, olheiras. Os óculos sequer combinam com seu rosto ou com as roupas largas, pouco femininas. É feiosa. Mas, ah, vou chamá-la para jantar.

28 março 2012

87/365
Eulália

Com um quase nada de forças, chega em casa. O trabalho de limpeza continua. Junta restos pela cozinha, afasta a poeira, lava talheres, dá descarga. Moída, porque o culto hoje foi difícil. Ex-viciados, ex-traficantes, ex-baitolas pra ela descarregar, salvar, levar à luz, oferecer o reino dos céus. Rouca de tanto gritar aleluias e cantar com devoção. Depois do banho, agradece por ser viúva e pelos filhos já serem adultos. Estar só como gostaria de estar. Cobre-se com um cobertor xadrez, toma um copo d'água e fecha os olhos. Minutos depois, a lembrança. Mas deixa pra amanhã a oração. Jesus há de perdoar esta falta.

27 março 2012

86/365
Taís

Depois da aula de inglês, a tarde é livre. Toca violoncelo, come biscoitos com coca cola, faz um ou outro dever de casa, assiste a Malhação, volta a tocar violoncelo. As amigas da quadra chamam: “desce”. Ela desliza pelas escadas dos anos sessenta – quase originais, não fossem as barras modernas – de chinelo, camiseta e short de pijama. Conversa, programa encontros, troca músicas por bluetooth, pergunta pelo Fernando amenamente, sem grandes interesses. Volta, liga pra mãe, que ainda demora a chegar. Secretária de ministro. Começa a pensar no jantar, fuça a geladeira. Volta ao violoncelo. Recebe um sms com notícias do Fernando. Menino idiota. Decidida, telefona de novo pra mãe: “traz uma pizza?”. Tudo certo. O resto do dever de casa, violoncelo, novela das sete, jornal, violoncelo. Toma banho e espera a pizza.

26 março 2012

85/365
Adélia

Para quem já se viu em cima de uma balança que marcava mais – muito mais – do que cem quilos pernas com pele não eram nada. Também não lhe incomodava a falta de cintura e a flacidez nos braços. Nem mesmo as estrias. Cirurgia de redução de estômago marcada e ela desistiu, fugiu. Trancou-se em casa, desligou o celular e desempoeirou a esteira, comprada há mais de dois anos. E foi no dia em que atingiu os 59 quilos eliminados que decidiu se matricular numa academia badalada. Já não era obesa, julgava que já podia usar roupas justas. Fez megahair e gastou todas as economias em calças, shorts, tops, macacões novinhos. Diariamente, malhava por duas ou três horas. Sem personal trainer e com disposição. Aos olhos dos outros frequentadores, não era uma "gatinha", porém, admirava-se, fez amigos.

25 março 2012

84/365
Mariana

Domingo. Hoje é dia do filho da puta chegar bêbado. Mataria ele se não fosse quaresma.

24 março 2012

83/365
Eliete

E em Maranguape não se falou em outra coisa. Só assim, com a morte do maior humorista do mundo, Eliete pôde passar despercebida. Juntou em sua valise seus vestidos, lenços, o único sutiã e outras pequenas peças. O esmalte, algodão e acetona. Pegou o primeiro ônibus para qualquer lugar. Deixou seus gêmeos de doze anos dormindo, o aluguel atrasado, dívidas nas bodegas e na farmácia. Mal soube do humorista, de quem chegou a sentir orgulho por ter projetado nacionalmente o nome de sua cidade natal. Mal teve tempo de lamentar qualquer coisa; o coração na boca. Coragem até nos cabelos.

23 março 2012

82/365
Madalena

Naquele dia acordei inquieta, lavei as vasilhas e arrastei a estante. Algo estava pra acontecer. Apertei meus seios, como se abraçasse eu mesma, andando dum lado pra outro. Uma angústia aqui, ave. Telefonei pros meus filhos e pra minha irmã; todos bem. Voltei pra lida, porque podia ser simplesmente um objeto na minha casa impedindo o fluxo e eu sentindo isso tudo. Mexi, revirei, reorganizei e a notícia chegou, como sempre chega. Era o Eraldo, pai dos meus filhos e amor da minha vida. Já não estávamos juntos há tantos anos, mas parece que o coração não raciocina. E foi a piranha que veio me contar: olha, Madá, o Eraldo morreu, mulher. E eu me esforcei pra não parecer incomodada e não tinha jeito e não teve jeito: ela viu o desespero saindo pela minha garganta, o choro caindo em litros. Peguei em tudo que é vassoura e rodo, tentando voltar ao trabalho e eliminar esse sofrimento. A dor não passou.

81/365
Zaynah

Não quero meu corpo à mostra, não vendo minha imagem a revistas ou simplesmente ofereço aos olhares cobiçadores dos homens. Sem lenço não saio. Não interessa onde estamos. Assim, minha mãe me ensinou, como a mãe dela a ensinou e a mãe de sua mãe. O véu não tem a ver com os costumes de um país ou povo, mas com proteção, devoção, compromisso, amor. Já passamos por Paris, Cuba, Buenos Aires e, agora, Brasília. Em cada um desses lugares, o olhar ocidental se repetiu. Isso não tem importância, pois, também na nossa crença, não precisamos nos misturar com outras pessoas. Basta conhecer e respeitar. Meu hijab é protetor e vai cobrir a minha filha e a filha de minha filha e assim por diante. Sem que nenhuma de nós tenha que se confundir com bobagens como a exibição provocadora.

21 março 2012

80/365
Daniela

Certa vez, ainda na cama, Rogério me disse que o que lhe atraía em mim era a juventude. Retruquei, incrédula e ofendida, que aquilo parecia coisa de garotão, de menino sem nada na cabeça. O que lhe interessava, afinal, uma beleza desenrugada? Ele me esclareceu: eu era livre de rancores e mágoas. Era dessa juventude, dessa inocência de sentimentos, que ele falava. Sorri, me envaideci. Agora, todavia, pouco mais de cinco anos passados, vejo como envelheci. Talvez por isso Rogério não tenha apostado em mim; cansou, desistiu, ou simplesmente não quis apostar contra o líquido e certo: eis-me aqui, bonita, robusta, saudável e tal e qual mal humorada e amarga. Se tanto, salgada pelo tempo, seca e indigesta.

20 março 2012

79/365
Vivian

Tu sabes que tens que te controlar. Não podes interferir no negócio do teu esposo. Sim, tu és a primeira dama do maior sacolão do Guará e o teu homem sabe que, sem ti, ele nem teria todo esse sucesso e esse patrimônio. Mas não te metes, não é prudente, nem inteligente. Não deves dar ordens aos funcionários, já tens duas empregadas só tuas em casa; não deves ficar circulando pelo estabelecimento, conferindo serviço e dedurando pequenas infrações. Tu não és a fiscal da loja, pões isso na cabeça. Tu tens duas meninas a dar exemplo e tens também uma casa grande para administrar. E, bonita como és, não deves mesmo circular pelo sacolão. O lugar é pacato e familiar, mas há bares e biroscas por perto; muitos bêbados inconvenientes. Se podes escolher, boneca, vai ao shopping, vai fazer massagem, vai levar as pequenas ao circo. Deixa teu esposo lá, a cuidar de tudo.

19 março 2012

78/365
François

Sim, eu tenho uma namorada. E, sim, há muito sei que gosto de mulheres. Mas tenho preguiça de fazer disso uma bandeira. Vivo com Ângela naturalmente; vamos ao cinema, a bares, ao teatro, fazemos supermercado juntas. Acredito que o preconceito existe, apesar de nunca ter sofrido diretamente, que o mundo é machista e que ninguém tem nada a ver com a vida sexual dos outros. Acho bacana que se travem discussões a esse respeito e reconheço que a mudança é importante. Mesmo assim, não tenho paciência. E não tenho nenhuma vontade de trazer para mim essa responsabilidade. Sou velha demais, ocupada demais e feliz demais pra isso.

18 março 2012

77/365
Bárbara

Criou mais personagens de alcova. Difícil falar de cotidianos que não estejam cercados por paredes; soa tedioso e até falso. Real, verossímil é falar de grandes melancolias ou de brigas íntimas. Assim criou Rose e William, que não conseguiam se enteder. Ao menos cuidou para inverter papéis, a fim de dar graça à narrativa. Contou a história de um William doce, sensível e uma Rose bruta. Ele falava, falava, falava e ela não compreendia - apenas enxergava uma boca se mexendo. Ela, por sua vez, maquinava automaticamente o modo de sair da discussão inteira e superior. Magova. O bate boca se findava e William permanecia na cama, inerte e incrédulo. Chegava a rezar: "deus, eu não consigo mais, me dê forças!" E ela saia do quarto resmungando, com uma voz mais grossa que o seu timbre costumeiro. Mas voltava, sempre voltava, para o golpe final: "a sua sorte, William, é que eu não fui treinada pra bater. Porque a minha vontade agora era te encher de porrada, seu merda". Eram personagens iguais a qualquer coisa, porque, afinal, a esta altura, já se escreveu sobre tudo. Que fazer? Profissão ingrata - Rose e William eram fórmula. E venderiam bem, tal como Cauby e Lavínia, Charles e Emma, Santomé e Avellaneda, Camille e Auguste.

17 março 2012

76/365
Wilma

No meu quarto, há dias, a leitura de cabeceira é o Guia Quatro Rodas. Traço percursos, calculo distâncias, contabilizo despesas. Já não é janeiro. Nem fevereiro mais é. Gosto do contra fluxo. Isso me excita, me motiva. Arrumei o meu jipe, minha mochila. Biquini, toalha, roupas leves. Barraca, cantil, caixa de isopor. Repelente, bota, calça com bolsos. No cabelo, trança. ou rabo de cavalo Bloqueador solar. Olhos pintados. Todo mundo trabalhando, retomando a rotina pós verão. Saio agora mesmo de Brasília e só paro em São Luís, dia 2 de abril, talvez.

16 março 2012

75/365
Paola

Meu sono é tipicamente depressivo. Se me chateio, se me magoo, logo sinto sono. Pra não chorar, durmo. Para não encarar o mundo, não me relacionar com pessoas que possam me magoar, para evitar fazer algo errado e que me cobrem por isso, durmo. Não tem café, coca cola, guaraná em pó, cocaína que me mantenha acesa. É um sono infeliz, sem sonho. Durmo para não discutir com o Bruno, para não ter que cuidar da Ana Carolina e do Gustavo, para não ouvir a d. Mirtes, para não ir trabalhar. Adoeço, durmo. Desperto cansada, bebo água, ligo o rádio, desligo, faço xixi e volto para a cama. Dias, dias, dias... Não tenho ânimo pra pedir ajuda. Bruno não me ajuda. Choro. Não me mantenho alerta para rezar. Desisto. Durmo.

15 março 2012

74/365
Naiara

Passou os dedos pelos meus cabelos. Prometeu amor eterno, ali, em segundos. Fechei a cara, chorei. Depois da transa a contragosto, voltei a chorar. Levantei e comi 12 chocolates. Ele não disse nada, mas eu vi quando arregalou os olhos. Toda mulher nota isso. Murmurei, nervosa, "o que é?". Ele insistiu na discrição. Sorriu amavelmente. Ofereceu o aconchego de sua asa e me enfiei ali, com vontade de ser pra sempre. Na TV, BBB. E eu chorei muito. A prova do líder foi cruel.

14 março 2012

73/365
Andréia

As coisas não vão mudar. Quando ingressei no magistério, existia esperança e eu mesma tinha certeza de que faria a diferença, educaria crianças e jovens, construiríamos um país melhor. Quase conseguia, no silencioso caminho da escola, ouvir gritos de incentivo e me segurava para não ceder à tentação de lançar socos no ar, motivadíssima. Não demorou para eu me ver envolvida com discursos sindicais, replicados por colegas estressados e mal remunerados. Não demorei a me render às licenças emendadas – LER, depressão, estafa, dores de coluna e cabeça, alergia respiratória. Não demorou para me transferirem para uma atividade burocrática. Adeus às salas de aula, aos alunos estranhos – insetos – e à encheção de saco por coordenadores, diretores. Ponto, provas, chamadas, giz – adeus. Agora, uma greve safada. Ajustes safados que sequer saem do papel – R$ 1.450 mensais por 40 horas semanais. Acompanho tudo pela TV, tomando sorvete em cima do muro. Tão distante quanto eu conseguir.

13 março 2012

72/365
Emília

13 de abril de 2012 - Pronto. Marquei uma data. Daqui a um mês, vou largar para sempre o cigarro. Motivo: saúde. Exclusivamente, pois tenho um tumor nas cordas vocais em pleno (e célere) desenvolvimento por conta desse conceito/objeto, que já foi minha comida, meu charme, minha muleta. Mas não estou feliz e vou registrar, neste meu diário fiel, a minha profunda indignação: dezoito anos atrás, quando pus o meu primeiro cigarro na boca, fui uma jovem ousadinha, inteligente, boêmia e extremamente sensual. Nos bares, à espera de um amigo ou amante, cruzava as pernas e acendia um free. Um movimento de cabeça fazia com que os cabelos ganhassem volume, o olhar focava desfocado o horizonte. Eu era um desenho vivo do objeto de desejo de homens e de admiração das mulheres. “Tem fogo?”, pediam. “Fogo?”, ofereciam.

O cigarro era o começo de uma amizade ou de uma bela trepada.

Hoje, sem que precisem me abordar, me sinto invadida. Me olham com asco. Isso acaba com o meu humor. Já até me xingaram no trânsito, às 7h da manhã: “nojenta, apaga essa porra. Tu vai morrer”. Ele também vai, não vai? Não pratico esportes, bebo, cheiro mal. Sou, hoje, o antissímbolo do que fui. E mais: existe uma bosta de conspiração social, com médicos, dentistas, opinião pública, imprensa na luta contra o cigarro. Saco! Dois maços por dia – cada um com figuras assombrosas, para as quais olho com uma curiosidade mórbida. Mais um mês. Até lá, espero não falecer e me acostumar com a ideia.

12 março 2012

71/365
Cibely Spíndola

Harry foi embora de São Paulo. Não consegui esperá-lo no aeroporto e nem vê-lo aqui em Monte Mor. Jogo de polo. Muito assédio. Fecho os olhos - se eu fosse a princesa que meu empresário me fez acreditar que eu era, estaria ao lado dele, como namorada ou ao menos como uma membro da realeza, a quem ele também dispensaria honrarias. Bastaria ter ficado entre as finalistas do Miss Campinas Gay? Talvez. É bastante provável. Gostaria de ter sido bajulada por ele ou por outro príncipe. Gostaria que algum grande homem me reconhecesse na multidão e se apaixonasse perdidamente por mim. Quem sabe não vem algum no aniversário da cidade, dia 24? A prefeitura vai caprichar na festa. Se não, vou me mudar para a capital. Vou brilhar no mundo artístico e encontrar o meu príncipe por lá.

11 março 2012

70/365
Oyá

São nove os filhos que eu pari. Mas meus protegidos são muitos mais. Me evocam quando o céu quer escurecer, se um vento cerra portas com violência, um raio cai ou caso uma tempestade comece a se formar. É quase um pedido de piedade. No entanto, nem tudo está ao meu alcance - por que cessar o óbvio? o certo? o inevitável? Lanço à Terra o que a Terra precisa/provoca. Serviço feito, danço, balanço cabelos, vermelheio vestiário, boca e faces. Tão humana quanto pareço. Tão entidade quanto me respeitam. E sigo ajudando, tão justa quanto mereçam.

10 março 2012

69/365
Jeanne

Julguei ter sido esquecida ou preterida. Afastada de minha irmã e meu afilhado. Mas não. Eu sequer consigo conceber o quanto sou amada e o quanto paira sobre mim um manto protetor de amor puro. Isso é o que me contam e eu não compreendo. Eu amo também, mas nem sempre sou capaz de me espalhar. Me tranquei, me fechei, me retive. Mas volto a compartilhar, aos poucos, o que é bom. Sou guerreira, sou trabalhadora. Inteligente e bela. Admirada e reconhecida. Um dia batizo o menino.

09 março 2012

68/365
Valeriana

Depois da novena, escrevi ao meu menino. Espero que lhe entreguem a carta. As pessoas que circulam por aqui não parecem confiáveis. Prezo muito pela confiança. "Filho, leia sozinho. Tire-me daqui, por favor. Há vermes por todos os lados. Aqui é bem sujo. Te amo, se cuide, te espero. Mamãe". Sim, sim, imagino que vão entregar. Hão de ser honestos. Conto os dias pra voltar pra casa.

08 março 2012

67/365
Xantipa

Substituta de trapezista? Eu merecia mais. Pratico trapézio desde os cinco anos de idade, todo mundo sabe. Tenho mais técnica, mais desenvoltura e até mais simpatia. Meu corpo é mais bonito, inclusive. Mereço continuar no apoio, com pequenas aparições coadjuvantes? Da bilheteria eu até gosto, mas odeio organizar filas, orientar os artistas nos bastidores – “Crezia, mudar a maquiagem. Dalto, falta o colete” – e também já não tolero auxiliar o acrobata, principalmente quando tenho que ajudá-lo a se vestir. Seu corpo fede. Substituta!? Vão pro inferno. Continuo nas minhas múltiplas subfunções. Porque eu não vou dar pro palhaço, pro mágico, pro domador, pro motoqueiro do globo da morte.

07 março 2012

66/365
Hélia

A mão gelada e dura, que muitas vezes foi algoz de mímicas ameaçadoras e até de tapas, agora deslizava suavemente por dentro da minha blusa, até o bico do meu seio esquerdo. Não dissemos nada. Confusa, me deixei arrepiar enquanto assinava veementemente os papéis do divórcio. Estávamos no fórum. Os dois advogados, depois das discussões calorosas e, finalmente, do acordo, nos deixaram a sós. E o filho da puta do Rafael se levantou e veio tocar o meu corpo. Como se fosse meu dono. Como se ainda quisesse me mostrar que me conhece inteira e sabe me amolecer. Deixei.

06 março 2012

65/365
Sueli

Minha mãe morreu ontem. Deixou três irmãos muito mais novos para eu criar: Cássio, Acácio e Verônica. Ao sair do hospital com essa notícia, não sabia o que fazer. Não sabia o que providenciar para o enterro dela. Não tinha dinheiro suficiente para ir à casa da minha amiga buscar os meninos e voltar para casa. Ou deveria voltar ao hospital? Que papéis eu deveria levar e para onde? Não tenho crédito no celular. Além dessa amiga, que nem é tão próxima assim, não tenho para quem ligar. Aos dezoito, três filhos para banhar, dar de comer, acompanhar o desempenho na escola. Uma mãe para enterrar, pagar um enterro. Ganhar dinheiro pra tudo isso. Mas o cemitério não espera. Quem me emprestaria dinheiro pra isso? Que pessoa ou que banco? Eu não tenho emprego. Estudo em escola pública, moro na periferia, ando de transporte público, não tenho bens, minha casa é alugada. Só minha geladeira é nova, que o governo deu. E minha mãe morreu. E eu tenho Cássio, Acácio e Verônica pra criar. Tenho que ser a mãe agora. Será que vou ser despejada?

05 março 2012

64/365
Magda

Tenho poucas decisões a tomar, não me faltam dinheiro e amor. Minha família é estável. Nunca usei e nunca tive amigos que usaram ou usam drogas. Não há alcoólatras em meu raio de relacionamentos. Meus colegas de trabalho são bacanas, minhas contas estão em dia, meus filhos vão bem na escola. Meu marido é amoroso, mesmo depois de doze anos juntos, e meus amigos são fiéis e compreensivos. Vou à igreja regularmente. Comungo. Não tenho muitas rugas, não sou gorda, não sou feia, não cheiro mal, não tenho traumas. Mas existe algo que eu não tenho. E eu não sei o que é. E procuro não procurar saber, mas essa ausência me incomoda. E me faz chorar convulsivamente todas as noites.

04 março 2012

63/365
Edna

Vestiu roupas pesadas, apesar do calor, para economizar espaço na mala. Certa vez, ouviu como uma espécie de conselho que nós só devemos possuir o que podemos carregar. Não conseguia parar de pensar que possuía um lar e não conseguiu encaixar essa conclusão no conselho. Debruçou-se numa mureta com boa vista em Santa Tereza. Talvez calculava para onde iria. Talvez dava a si um momento para ter pena dela mesma ou para lamentar qualquer coisa. Agradeceu por não sentir dores, por estar saudável, por ter um pouco de dinheiro e por ter um celular com fones de ouvido. E partiu.

03 março 2012

62/365
Germana

É uma harpia. Mede 93cm, pesa 7,3kg, tem penas brancas na cabeça e cinzentas no corpo. Gola escura e imponente. Elegante. Está há muitos minutos à espreita. Um macaco se aproxima. É esperta, inteligente. Prepara o bote. Visualiza o sucesso, com paciência e malícia. Belo banquete. O pobre primata, inocente, chega, galho por galho. Belisca sementes, se admira com a paisagem, saltita. O calor é insuportável. Sorrateira e aguda, ela o surpreende e - zap - agarra-lhe as orelhas como um macho safado merece. Unhas enormes. Ele enlouquece, mas ela parece piedosa - é rápida. Devora-o.

02 março 2012

61/365
Liana

Um dia a minha bunda vai cair. Minhas coxas e braços serão ossos e pelancas. No meu pescoço, papada mole. Minha pele, sem viço, não vai exalar um cheiro natural bom. Rugas vão esconder a juventude que talvez ainda vá existir nos olhos, nos sonhos, na imaturidade de decisões, na inquietude. Só vou despertar o interesse de uma ou duas crianças curiosas, que quererão ouvir histórias e tocar meu corpo em predecomposição. E é possível que eu morra sem mesmo me lembrar dos nomes das pessoas - num autismo senil -, sem ser capaz de sentar e rebolar no pau do amor da minha vida ou sem conseguir fritar um ovo para o meu filho ou rir da piada de uma amiga tão espirituosa.

01 março 2012

60/365
Mônica

situação 1
M - Paulo, hoje ouvi na Band News um certo "Paulo Bittar" opinando sobre o trânsito na saída da Candangolândia. Às 8h30. Era você?
P - Claro que não, chefa. Foi coincidência.

situação 2
M - Gente, eu adoro a Band News. Escuto todo dia. Queria participar dessas dicas que os ouvintes dão sobre trânsito.
P - Também adoro. Todo dia escrevo um e-mail falando como está o trânsito na saída da Candanga, onde moro. Sempre lento... terrível.