31 janeiro 2012

31/365
Adelaide

Acha que deveria ser indenizada pela quantidade de gordura que inala, na padaria. Já às sete da manhã, são inúmeros os trabalhadores e vagabundos que pedem coxinhas, risoles, quibes, enroladinhos de salsicha, pastéis de queijo e de carne, cachorro quente. E muito açúcar: coca cola, refresco artificial. Enjoa. Algumas vezes teve que correr ao banheiro, mas não chegou a vomitar. Por enquanto. Quando tira o uniforme, à tarde, sente nojo. E o pior é que tem que usá-lo no dia seguinte sem lavar. A gerência autoriza apenas duas lavagens por semana, para não danificar a aparência do tecido. Tudo deve estar impecável. A imagem que o cliente tem do lugar tem que ser a melhor. Em reunião, sugeriu que fizessem salada de frutas. Foi ignorada: agora, anunciou a gerência, vão começar a oferecer bolinhos de chuva e batatas fritas. Adelaide desmaiou.

30 janeiro 2012

Mais um fim de semana sem internet. Resultado: três pequenos contos nesta segunda-feira, praticamente escritos à mão.

30/365
Úrsula

Melancólica. Acordava às 5h para tomar antidepressivos, sem nunca acreditar que teria um dia bom. Voltava para a cama e assistia a um programa aborrecido de TV – doenças incuráveis, problemas incríveis, paranormalidade. Entediava-se. Desligava. Em um horário aprazível, telefonava a uma amiga (trabalhando, Úrsula, depois ligo); tentava a mãe (de novo, filha? Olha só, você deve fazer assim), entediava-se, desligava. Não tinha mais o César para ligar, para chutar o pé, sentir o cheiro, combinar de ir ao supermercado à noite. Mas já fazia tanto tempo. Por que ainda lembrava-se dele? Não tinha mais o escritório, cheio de clientes, cheio de funcionários incompetentes, cheio de problemas. Convidou o Marcelo, ex-sócio, para almoçar (claro, que horas?). O receio de que o babaca esperasse que ela pagasse – já que o convidou – a fez desistir. Ligou de novo (mas por que mudou de ideia, Úrsula? Eu hein...). Almoçou sozinha no restaurante mais caro que pôde encontrar. Fez planos para a viagem de março – Belém do Pará. Quem convidaria? Entediou-se de todos. Voltou para casa. Desligou-se.

29/365
Juliana

Livros, apostilas. Cursinho. Domingo. Sol. Nuvens. Sol. Notebook, cabos, caneta, caderno. Internet. Inscrição. Banco, conta, dinheiro, saldo. Livro. Caderno. Sala de aula, professor, pincel, quadro. Colegas. Concorrência. Bolsa, barra de cereal, água. Apostila. Espirro. Óculos. Saudade. Foco – quadro. Matemática financeira. Direito Penal. Inglês. Alarme, pílulas. Notebook, apostila. Intervalo, água, café, banheiro. Sol, tédio, raiva. Resignação. Sala de aula, professor, pincel, quadro. Colegas. Concorrência. Apostila, livros. Caderno, caneta. Repetição. Exercícios. Interpretação. Erros, acertos. Pontos. Calculadora. Decepção. Otimismo, perseverança. Almoço. Descanso. Livros. Sol. Nuvens. Sol. Notebook. Celular. Rapidez, pressa. Sala de aula, caderno, caneta. Direito Administrativo. Óculos. Água. Exercícios. Rabisco – saudade. Renan. Pôr do sol. Alarme. Carro. Casa. Banho. Livro. Cama. Foco.

28/365
Priscila
 
É fim de janeiro. Aniversário do Joseph, capricorniano. Acordei cedo, ajudei minha mãe com a louça de ontem, tomei café com ela. Fui à feira, comprei cheiro verde e pimentão. Fiz as unhas, depilei pernas, axila e virilha, alisei os cabelos, peguei uma blusa na costureira. Peguei com a Luciana os ingressos pro pagode hoje. Banho de lua na laje de casa. Desliguei o celular pro Joseph nem sonhar em me telefonar. Sem explicações. Tudo surpresa. Sete da noite. Comecei a me arrumar – banho, desodorante, perfume. Ensaiei uns passinhos na frente do espelho. Liguei o celular para ver quantos recados tinha recebido do Joseph. Nenhum. Procurei o número dele, liguei, fora da área de cobertura. Surpresa?

27 janeiro 2012

27/365 
Yasmim

Chegou do futebol. Tomou banho, comeu miojo com requeijão e ouviu as perguntas do pai sobre o jogo, respondendo "ã-hã" e variações com a cabeça. Diante do espelho, arrumou mais uma vez as trancinhas. Sorriu para si. Computador. Hora marcada com um garoto, o Daniel. Não o conhecia pessoalmente, ainda, mas ele fora uma espécie de indicação da Ana, super amigo do ficante da super amiga. Nunca se interessou por garotos daquele jeito. Sempre jogou bola com eles, brincou de esconde-esconde na rua, brigou. O Daniel era tão lindo. "Filha, vem ver o jornal com o papai". Não, não queria saber de jornal, de prédio que caiu, de ministro que vai cair. Daniel. Daniel. Daniel. Tinha que chamar de alguma coisa aquilo que sentia e que não tinha nome. Daniel. Daniel. Daniel.

26 janeiro 2012

26/365 
Elisângela 

Cumbuca e produto pra relaxar cachos na mão. Mistura com o pincel macio e passa com cuidado na raiz do cabelo da cliente.
- Eu adoro ela. Foi assim: ela era minha cliente e, com o tempo, fomos ficando amigas. Ela me chama pra sair, visita minha casa, me conta as coisas dela...
- Então tá tudo ótimo.
- Não, mulher, escuta. Ela me enche o saco. No dia que eu me embucetar aí vocês vão ver.
(risos de todo o salão)
- O que ela te fez?
- Ela vive emburrada comigo. Se me liga e me chama pra sair e eu não vou, pronto, emburra. Se vem aqui no salão e eu não atendo ela na frente de todo mundo, emburra.
- Mas ela teria que entender, né? Você está trabalhando, tem outras clientes.
- Mulher, ela nem marca. Ela quer ser atendida na hora.
- Isso é amiga?
- Já tá quase pronta, viu? Mais dois minutos. Vamos já lavar.
- Tá.
- Outro dia me chamou pro cinema e eu disse que não tinha dinheiro. E ela fechou a cara. Ave Maria, só se eu der minha periquita (risos).
A cliente olha o cabelo cheio de química pelo espelho. O cheiro é forte.
- E quando ela chega eu tenho que sorrir, nem que eu tenha brigado com o Anderson ou qualquer outra pessoa. Eu tenho que tratar ela bem.
Chega a fulana.
- Amiga linda, eu tava te esperando! Vai querer depilar, né?
O couro cabeludo da cliente ardendo com a progressiva.

25 janeiro 2012

25/365
Maria Inês

Meu muro e meu portão são baixos. Minha fachada é meio velha, descascada. Vejo a rua, vejo o povo passeando, dou bom dia.  Me trazem leite, pão e jornal na porta de casa. Vou à bodega. Conheço todo mundo. Estou na Lapa há mais de 40 anos. Só nesta rua, mais de 25. Hoje é um dia especial - o aniversário da cidade que me oprime e me acolhe. Tem corrida de rua, show, festa na Paulista. Eu não vou. Mas fiz um bolo especial. E comprei velas. À noite, depois de ver tudo pela televisão, e depois de passar as pomadas nas pernas, e tomar o remédio da pressão, e ver se o Pingo, meu vira-lata, já dormiu, eu vou cantar parabéns pra minha cidade. Sozinha.

24 janeiro 2012


24/365

Katrinna

Em plena terça-feira de janeiro e ela em casa, sem dinheiro, sem trabalho. Por orientação de seu advogado, aguarda o fim do seguro desemprego. Talvez espere até o fim do processo; poderá receber alguma indenização. Assistiu a dois filmes ontem. Acordou às 9h. Escolheu a conta de luz para pagar. Sem internet, o passeio do dia foi até a lotérica da esquina. Comprou dois pães. Evitou gastar com cuscuz. Pouca margarina. Está magra - não tem academia, gelatina diet, leite desnatado. Anteontem ligou para a mãe. Velha insensível. Se vire, pague suas contas e me deixe em paz. Do pai e do irmão não tinha notícias. O namorado? Nos fins de semana em que os dois conseguem juntar algum dinheiro, saem, dançam, trepam num motelzinho. Mas é só o dinheiro acabar e cada um volta para a sua rotina. Desde a semana passada não tinha notícias dele. Cachorro. Ana Maria Braga. Eu quero trabalhar. Vai lavar roupa, arrumar a cama, limpar a casa. De novo. À tarde, ligará para o advogado.

23 janeiro 2012

Fui vencida. O meu desfio de 2012 não foi cumprido. Mas não quero mais essa culpa para a minha coleção. Não foi por preguiça, falta de inspiração ou bloqueio criativo. Não publiquei nos dias 21 e 22 porque o meu acesso à internet está limitado ao trabalho. Mas escrevi, apesar da trabalheira com mudança de endereço.

E, para provar, eis os contos de hoje, ontem e anteontem.



23/365

Graça

Meu ano está maravilhoso. Me botaram pra servir este andar agora, com menos pessoas e todas educadas. Chamaram a Camilinha no Extra. Ela vai ser caixa. E a Duda começou em dezembro como adolescente aprendiz na Caixa Econômica do Gama. Eu passei no Enem. Agora vou ter que procurar em qual faculdade eu consigo entrar com bolsa do Prouni. Você vê aí pra mim na internet? Não precisa ser agora não, mais tarde, quando eu trouxer o seu café. Mas, menina, você não vai acreditar, meu coração está uma bagunça. Cansei do açougueiro. Mas foi porque eu me apaixonei. Nunca acreditei nesse negócio de amor à primeira vista, mas existe. Fui numa festa com minhas amigas e me apaixonei. Fiquei com o rapaz. Traí meu namorado. Ele estava viajando. Mas agora voltou e já percebeu que eu estou fria com ele. Vou ficar assim até ele se tocar e cair fora. Não tenho coragem de dizer que eu tenho outro. Ele não ia fazer nada, não ia matar ninguém, mas é chato, né? São três anos de namoro. Ele me ligou ontem e disse que ia lá pra casa. Eu falei que estava passando mal, pra ele não ir. E saí com o outro. Minhas meninas não sabem. Anselmo o nome dele. Não, não é muito bonito não. Mas os olhos dele são lindos, cor de mel. Não vou reclamar não, meu ano começou bem. Graças a deus. Deixa eu servir a outra menina ali.


22/365
Renata

Contou e recontou os dólares. Não batia. Era a primeira vez em Miami. Conferiu cada compra, forçou a memória para visualizar cada lanchinho, sorvetinho, chicletinho. Gastou com algo que não lembrava ou foi roubada. Mas quem roubaria vinte dólares? Droga. Devia ter reservado a bosta do dinheiro. Agora, por causa de vinte dólares, estava prestes a perder o voo. Seria possível ir até o aeroporto correndo? Pegou o mapa. Muito muito muito muito longe. E ainda teria que carregar malas, sacolas, bolsas. Droga. Pensou em pegar emprestado com alguém, mas quem? E com esse inglês péssimo? What you... Do you... Vinte. Two, zero. Money?, ensaiava. E como ia devolver? Sedex? Quem ia confiar nela assim? Era outro país, sei lá. Ou podia vender o tênis, as garrafinhas? Droga. 6h da manhã. Incomodaria algum hóspede? Haveria brasileiros alí? Droga. Batia a cabeça na mala, desejando que alguma ideia lhe escapasse por um buraco qualquer.

21/365
Maria do Rosário

- Não trabalhamos com intuição, senhora.
- E como é que a gente faz, moço? Meu filho ainda não voltou pra casa e eu sei que aconteceu algo ruim.
- Qual a idade do rapaz?
- 17. Não, 18. Acabou de completar... Hoje é o aniversário dele, já passa da uma da manhã.
- Aí é que eu não posso fazer nada, senhora.
- Que porra é essa, seu delegado?
- Eu não sou delegado, senhora. Sou agente. E, infelizmente, não posso fazer nada. A senhora pode apresentar queixa de desaparecimento 48 horas depois do sumiço do rapaz. Então, vai ter que esperar.
- Eu estou lhe dizendo, seu agente, que algo ruim aconteceu. Eu sinto isso. A informação está aqui, ó (batia com a mão fechada no peito), mas eu não consigo decifrar. Sei que foi sério. Talvez uma tragédia.
- Já disse que não há o que fazer, senhora.
- Eu estou desesperada, meu filho precisa de ajuda.
- Se ele precisasse mesmo de ajuda, ele ligaria.
- O senhor não está entendendo.
- Senhora, eu devo cumprir a lei.
- (Exaltada) o senhor enfia essa lei no seu cu. Porra, já faz meia hora que eu estou lhe dizendo que...
- (Para outro agente) algema a velha. Desacato.

Rosário calou-se.

20 janeiro 2012


20/365
Ava Eugênia

Deixara de comer carne, inclusive frango. Tudo para agradar o namorado estrangeiro, que considerava a prática de devorar animais deplorável. A data do casamento marcada: 21 próximo. Falta muito pouco. E ela tem dúvidas, medos, receios. Não seria simples desistir, fugir, simular um chilique. Afinal, o casamento vai legalizar a situação do noivo excêntrico no Brasil. Será o mesmo que atestar que o ama para sempre e que, de um modo ou de outro, ela estará ligada a ele a perder de vista. Se sentia antecipadamente culpada, responsável por proporcionar a ele uma nova vida: possibilidade de ter uma carreira, de ganhar dinheiro, de prosperar. Largar hábitos ruins é fácil; organizar uma festa simples mas com detalhes de muito bom gosto é fácil. E aguentar um desconhecido para o resto da vida? Respira, acessa o iphone e tuíta, fingidamente entusiasmada: “Amanhã a festa mais animada do ano, meu casamento com o Philip. Espero todo mundo lá. Até a Luiza que voltou do Canadá. hahaha”.

19 janeiro 2012


19/365
Tereza

Ainda choro se algo me surpreende. Acredito em algumas instituições-conceitos, como amizade, família, mas com alguma desconfiança. Não sigo com rigor os meus ritos. Não respeito meu corpo. Os limites se impõem, mas contra a minha vontade. Ponho à prova a minha intuição. Não aprendi a perdoar, sou rancorosa. Cumpro minhas obrigações, às vezes com um entusiasmo genuíno, às vezes com apatia e até desprezo. Sinto raiva quase todos os dias. Não sorrio a nenhuma criança que não seja filha minha. E o sorriso de ninguém me comove. Retraio minha espontaneidade. Tento regularmente manter o desvínculo com alguns familiares e amigos. Até rezo. Planejo – e executo – meu lazer quase mecanicamente, para cumprir uma receita de vida boa. O tempo passa e eu cresço. E me torno, cada vez mais, uma pessoa pior.

18 janeiro 2012


18/365
Claudia

Não tinha papas na língua. E queria parecer não ter. Queria ser respeitada, temida. Desafiava. Apostava seu cargo de confiança, seu status. Falava mal da empresa e de seus superiores. “Você viu, Lu, que o chefe conversou por horas com a Vick ontem, na confraternização?” – alfinetava. “Vi, Claudia, mas não enxergo mal nenhum nisso”. Balançava a cabeça: “ai, Lu, como você é ingênua. A prova é cabal, querida: hoje ele chegou sério, sisudo. E sabe o que é isso?”. Lu esperava a resposta maliciosa, quase incrédula. “Ressaca moral” – e aguardava os olhos arregalados de Lu –. “É um filho da puta como outro qualquer”. Sabia que a Lu se mordia de ódio. Não pelos impropérios lançados a um homem aparentemente honesto, mas porque ela, Claudia, pra arrematar, agia como se fosse a dona do setor. “E, Lu, antes que eu esqueça, querida, estou esperando o relatório”.

17 janeiro 2012


17/365
Selma

Aprendi que a gente tem que agradecer até o que é ruim. Que o ruim é sempre supostamente ruim. Apenas. Estou diante do ponto dos exus de minha casa. Já conversei com meus guias, já chorei minhas pitangas, me descabelei – fiquei com os olhos inchados e o corpo dolorido. Agora acendo velas, bato cabeça. Não é fácil a gente se concentrar de verdade quando está magoada. As feridas não cicatrizam por magia. Difícil rezar. O Jonas é um bandido, pilantrinha, covarde. E não me quer mais. As pombas giras riem porque compreendem a bobagem que é lamentar amor perdido. Isso passa, garantem. Até passar, peço que prendam minhas pernas. Pra eu não correr atrás dele.

16 janeiro 2012


16/365
Iolanda

Meu filho, eu estava saindo do Comper e o rapaz gentilmente se prontificou a me ajudar. Porque eu comprei muita, muita coisa e tinha muitas sacolas. Eu vejo esse rapaz quase todo dia, ele olha os carros. Ele deve saber onde eu moro, pois fomos andando enganchados até perto do meu prédio. Ele tentou tirar as sacolas pra me ajudar, mas elas se emaranharam nos meus braços. Bastou isso. Seu Pereira, porteiro do meu prédio, veio correndo. E mais uns dois ou três que eu não conheço se amontoaram à nossa volta. E bateram no rapaz. Bateram na cabeça dele, chutaram a barriga, as costas. Ele não disse nada. Nem todo mundo é marginal, meu filho. E foi tudo tão rápido, que eu tentava explicar pra eles e não conseguia. Fiquei assustada. Se o rapaz não morreu, deve estar bem machucado, porque a última vez que o vi – me arrastaram pro outro lado e, aí sim, perdi algumas sacolas – ele estava ensanguentado no chão. Eu mesma subi pelo elevador e chamei a polícia.

15 janeiro 2012


15/365
Rita

No Pier 21.
- Pronto, perguntei se a gente podia pagar depois de comer.
- Imbecil. Idiota. Por que foi perguntar?
Não entendia a reação grosseira. A mãe era tudo pra ela. Mesmo sendo adolescente, não dava trabalho. Ajudava a cuidar da irmã temporã. Há pouco, a menina tentava tirar a fralda, na frente de todo mundo, e a mãe se servia.
- Hein, imbecil, responde. Burra!
(Rita calada)
- Idiota... não sei por que ainda saio com vocês duas. Perguntar coisas pra uma mulher. Uma mulher desconhecida. Eu mandei você perguntar? Mandei, hein?
(Rita calada)
- Trouxa, babaca. Eu perdi a fome. Vou pro carro.
(Rita olha assustada)
- Imbecil.
Não chora. Termina o prato calada. Não sabe como vai pagar a conta. Ou como vai levantar e ir embora sem ser percebida. Come toda a salada.

14 janeiro 2012


14/365
Elisabeth

Acorda. Escova os dentes. Banho rápido; café com toalha. A roupa foi escolhida na noite anterior. Creme, maquiagem, desodorante. Tudo cronometrado. Ao entrar no carro, as ligações começam: secretária, banco, filha, mãe, namorado. O amor não é prioridade. Chega ao banco, lê todos os jornais, analisa as taxas do Bacen, especula, sugere, opina. A secretária lembra que tem dentista às 11h. Manda cancelar, adiar. Café. A secretária telefona na hora do lanche. Na hora do almoço. Na hora do outro lanche. Jantarão juntas. O namorado telefona. Não atende. Taxas, investimentos, câmbio. Retorna a ligação e – sem ouvi-lo – pede que ele escolha o destino das férias. Tem que desligar. Entrevista um candidato à sua equipe. Café. Não tem tempo de imaginar praia. Delega. Filha, não posso falar agora, amor. Continue amamentando, sempre que ele chorar. Ouve o neto ao fundo. Desliga. Volta para casa. Jantar com a secretária, passar a agenda de amanhã. A mãe telefona, aconselha: diminua o ritmo. A roupa do outro dia já está escolhida. Demaquilante, banho, dentes. Duas pílulas milagrosas. Dorme.

13 janeiro 2012

13/365
Dorinha Landir

Por um rápido instante, se permitiu imaginar-se no lugar de Sheila, que lhe arrancava as cutículas. Atenderia mais duas ou três clientes. Na volta para casa, saltaria do ônibus sujo e lotado, passaria na padaria e compraria – fiado – um pacote de pão. O marido seria um desempregado barrigudo e nojento, os filhos catarrentos? Chega. Melhor voltar ao pensamento das joias que pretendia comprar, do novo carro, dos vestidos. O marido cheiroso, os filhos educados e brilhantes. Pediu champanhe à gerente do lugar – o nome lhe fugiu – e foi prontamente atendida. Melhor levantar o queixo, evitar olhar os olhos de Sheila, imaginar um pagode de laje. Isso nem deve existir, apostava. Já com os cabelos no lavatório, telefonou para Araci e, ao instruí-la sobre o jantar, ouviu um verbo mal conjugado. De onde vinha essa pobreza de espírito? Essa falta de noção? Nunca deve ter estudado, coitada. Ainda hoje, com seu salário irrisório, deve ter dificuldades para fechar o mês com as contas em dia. Era viúva e sustentava dois filhos e um neto. Pegava quatro ônibus todo dia. Chega. Saiu do salão. Só restava se certificar de que deveria reservar-se calada, desde o entrar no carro até chegar aos jardins da mansão. E subir o vidro rapidamente para evitar qualquer conversinha sem propósito do Jair, que começaria com um “boa tarde, madame”.

12 janeiro 2012


12/365
Flaviane

A analista queria inovar. Queria ir além de Freud e seus sucessores. Botou duas pacientes, desconhecidas entre si, para conversar. “Coisa estranha, o que ela quer com isso?”, e a outra respondia “e eu que sei? Essa mulher é louca”. Ela observava primeiro sem ser vista. Depois, passou a ficar na sala, postada atrás dos dois divãs paralelos. Era interessante, mas ela ainda não conseguia concluir nada – um experimento sem objetivo e sem hipóteses. E as duas passaram a sair de si, deixaram de falar dos seus próprios problemas ao léu, para ouvir e aconselhar a outra. Mais adiante, perderam o interesse por essa conversa solidária. E foi surpreendente para Flaviane ouvir especulações/suposições/verdades sobre si. “Hum, não te contei. Ela tem um namorado lindo, mas nem liga pra ele. Esnoba, sabe?” e a outra comentava “não consigo entender como alguém poderia tratar uma pessoa próxima com descaso. E nem bonita ela é. Deve ser doente”. E as sessões duravam mais, muito mais do que um bom filme.

11 janeiro 2012


11/365
Laura

Tinha pezinhos de anjo, menores que os da maioria das crianças da mesma idade. Mas era geniosa. Cada birra resultava em valiosos olhares permissivos e, às vezes, doces (além do pedido objeto do show). Não se tratava de falta de educação, diziam os pais e atestava a psicopedagoga, mas de personalidade. Um grito no supermercado, um escândalo na casa dos parentes, um choro desnecessário por uma boneca nova – tudo seria pouco, quase nada, diante do dinheiro que a pequena renderia. Os sonhos do casal – primeiro era casar, ter dinheiro para alugar um apartamento na Asa Sul, comprar um carro semi novo e planejar a chegada da princesa – agora se resumiam em quitar dívidas, equilibrar os gastos, sair do vermelho. Com um comercial de TV feito e já matriculada em teatro e sapateado, mal sabia a ordem do alfabeto. Investimento. Os olhos dos pais brilhavam de orgulho.

10 janeiro 2012


10/365
Wanda

Gostou do primeiro capítulo da novela com a Marília Pera. Era fã. Mas era raro isso acontecer, uma novela ser boa logo no início. O jornal começou e ela foi esquentar o arroz, fritar o ovo – o último – para o Juarez. Achava ele um filho da puta de marca maior, mas acreditava que mãe e mulher sempre ficam em segundo, terceiro, quarto lugar. Se tem um ovo só, é do homem da casa. Se são dois, era um dele e um do menino. O terceiro é que seria o dela. Ontem, o vizinho caminhoneiro entrara num buraco que quase cobriu todo o veículo. A esposa ficara louca, puxando os cabelos, mas ele saiu nadando. Um buraco sem sentido. Ela consolou a vizinha. Também ontem, tentou pela terceira vez confirmar a matrícula do menino, sem sucesso. Só vai ter outro dia útil de folga semana que vem. Hoje fez faxina na casa da dona Liduína, no Guará. Machucara o joelho, de novo. Não sabe como será amanhã, na casa da dona Viviane. O ovo frito, voltou à geladeira. Resto de arroz e cenoura. Aproveitou o óleo do ovo do Juarez. Fez um mexido pra ela e pro menino. Estranho a prioridade ser de um filho da puta desses. Mas não ia reclamar, estava feliz com a novela. Se o primeiro capítulo já foi bom, imagine os próximos.

09 janeiro 2012


9/365
Rosa

Já contabilizava oito anos na profissão. Muitas aulas dadas e especializações com os profissionais mais renomados de todo o mundo. E agora, depois de vender seu curso em um site de compras coletivas, batera todos os recordes: três a quatro aulas diárias, cada uma com três horas de duração. Mas ela nunca havia passado por uma situação assim. Nunca, nunquinha. Nada perto disso. Explicações demais. Enquanto ensinava pacientemente as alunas a delinear os olhos, deixou escapar o pior e mais estarrecedor peido de sua vida. As que estavam próximas notaram, chegaram a contorcer o rosto ou sorrir. Iam borrar a maquiagem, essas ridículas. Sentiu ódio delas e anunciou: vou lavar as mãos, caiu base e sombra líquida aqui, posso manchar o rosto. Explicações demais. Foi ao banheiro e lá ficou por mais de dez minutos. Ao retornar, observou o olhar das alunas. Claro que elas sabiam. Fez outro anúncio: o cano da torneira soltou, está tudo molhado, não vão lá, ok? Explicações demais. Seguiu com o curso, rubra, sem blush.

08 janeiro 2012


8/365
Danila

Deprimida, Danila assistia ao Fabuloso Destino de Amélie Poulain e chorava em bicas. Queria ser inocente. Ao menos na relação com a Natália, que era a mais desencanada das meninas de sua vida. Queria também que a Natália fosse inocente. Danila queria ser pura também no seu empreguinho de bosta – apesar de ser muito capaz e ambiciosa. Queria não ser mais ambiciosa; queria que ninguém mais tivesse ambição. Queria ter uma mobilete e até uma amiga aeromoça pra reavivar a fantasia do seu paizinho, que sofria a morte de sua última esposa há mais de seis anos. Queria morar na europa, que todos conhecessem Paris, e ser garçonete e escrever o cardápio ao contrário no vidro, sem ter medo, raiva, receio ou rancor de nada. Queria armar situações para a alegria dos outros, só pra deixar de ver gente tão deprimida. Mas desejava copiosamente que alguém se ocupasse da alegria dela, inocentemente.

07 janeiro 2012


7/365
Márcia Carolina

Márcia Carolina Coutinho Lima. Nascimento: 12 de janeiro de 1986. Natural de São José do Ribamar-MA. Solteira, sem filhos. Reside em São Luís. Disponibilidade para viagens. Experiências profissionais: parte administrativa de corretora de seguros – 4 meses; secretária de cirurgião dentista – 2 meses; assistente de limpeza na prefeitura de São Luís – 1 ano e 7 meses; estágio no SENAC – 6 meses. Cursos: Inglês – básico; Informática – básico (word e excel); Curso de brigadista – trancado; Curso de cabeleireira e manicure; Curso de camareira. Comunicativa, escreve bem, lê à noite antes de dormir. Esperta. Pretende ingressar no curso de Gestão Empresarial – noturno ainda em 2012 e tirar carteira de motorista. Não tem medo de trabalho. Boa aparência. Gosta de viajar e conhecer pessoas. Precisa pagar o aluguel.

06 janeiro 2012


6/365
Tânia

“Tudo certo”. Depois de conferir quatro vezes a autenticidade das cédulas, Tânia as enrolou e enfiou no sutiã. Entre o suspiro de alívio pelo ateste e o movimento automático de acesso ao seu cofre orgânico suado, pegou a bic e o boleto. Era muito dinâmica, apesar do alto percentual adiposo. “Vai ser o quê?” O cabra não sabia. Nunca vira homem tão enrolado; os olhos dele corriam pelo entorno dela – a banqueta, os azulejos antigos do comércio fechado, os restos de cartazes na parede, o vira-lata. “Cachorro”. De repente deu pra falar firme. “Cadela”. E Tânia estranhou, mas nem teve tempo de raciocinar e, até antes de ouvir a ordem de pôr as mãos na cabeça, já deixava à mostra os sovacos. Sensação de água gelada pelo corpo, de cérebro raciocinando rápido, trazendo opções e decisões, ao mesmo tempo. Ficaria calada – por direito – até a presença do advogado (que advogado ela conhecia, meu deus?). Mas quando abrisse o bico ia levar até os famosos mais honrados com ela. Os PF tinham algo de inocentes, pensou, pois comemoram feito crianças a prisão de uma pobre coitada. Até ouviu um deles dizer: “o jogo perdeu uma leoa das grandes”. Coitados, e não conteve o riso, ela não passara de hiena.

05 janeiro 2012


5/365
Luísa


Ouvia o seu velho tagarelar por todo o caminho da casa dos tios. Os fones ele já tinha puxado. Os pais perdem tempo demais com bla bla blá, pensava. Antes mesmo que ele se desse conta, ela já tinha aprendido a lição: não é legal bater boca com a avó. O seu nome completo ela ouvira vinte mil vezes até ali. “Você tem que ter consciência, tá ouvindo, mocinha?, que a sua avó não está conosco, nós é que estamos na casa dela; se ela disser que você não vai tomar o suco especial dos infernos que ela comprou, você não vai tomar, entendeu?”. Tudo por causa de uma caixa de suco artificial, com substâncias bioativadoras para fortalecer os ossos. Recomendação médica. Queria responder ao pai que tem achado seus ossos meio moles, ultimamente, o que tem até dificultado a educação física. Mas tinha medo de levar uma chapuletada na boca. Respondona, ele diria. Maleducada, ele diria. Devia elevar seus pensamentos, exercitar a paciência – com o pai e com a avó –, a compreensão, a solicitude, a compaixão, o amor. Lembrou do Gustavo Peixoto. E sorriu – o pai estranhou – ao pensar no seu cenário futuro favorito: os dois velhinhos (mas Gustavo com o mesmo penteado de hoje), com aliança grossa no dedo, provavelmente tomando suco especial para os ossos e repreendendo um ou outro neto.

04 janeiro 2012


4/365
Carmem

Voltou ao trabalho. Fazia – por gentileza – o levantamento de alguns dados para o relatório da colega, porque obviamente não tinha nada para fazer. Muito correta, muito séria, muito comprometida, logo arrumou memorandos e avisos a fazer. Milena, você está muito ocupada? Desculpe, é que não posso mais tratar dos seus números para o relatório – com um sorriso entredentes. Não haveria problema. Milena retomaria o trabalho. Mas, antes que ela se esquecesse: Milena, querida, amanhã você poderia revisar meus memorandos e avisos, quando eu acabar? É que o chefe vai querer ver e sabe-se lá, não é? Milena piscou marotamente para Carmem, pegou a bolsa e foi embora. Aquele código todos bem conheciam. Carmem chegou a sentir vergonha, mas depois relaxou. Relatórios, memorandos, avisos. Quem saberá quando e como ficam prontos?

03 janeiro 2012

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Isabel

Como alguém poderia saber? Meu vizinho, seu Júlio da padaria, Márcia do sacolão. Mas hoje todos me olharam diferente. A cada “Bom dia, dona Isabel” pelo caminho eu me sentia denunciada. A roupa era a mesma – da caminhada diária. Quando cheguei à porta do prédio, parei antes de entrar. Olhei em volta. Nenhum conhecido. Cronometrei o tempo. Não poderia demorar mais que o regulamentar da caminhada. Os rapazes muito simpáticos me receberam, preenchi a ficha, conheci as instalações. “A senhora já começa hoje?”. Olhei para o relógio. “Sim, acho que dá tempo. Quinze minutinhos, tá?”. Ele me colocou num aparelho enorme, com luzes piscando, números. Comecei minha caminhada artificial. Hoje, excepcionalmente, mais curta. Blindada do cheiro da rua, do sol e da chuva, dos “Bom dia, dona Isabel”, dos vigias incansáveis. Evitei o espelho, certa de que me sentiria como uma daquelas moças dali: finas, magras, com longos cabelos e roupas de grife. E me senti. Era ali que eu queria ficar todas as minhas manhãs. Sem que ninguém soubesse.

02 janeiro 2012


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Vinólia

Na avaliação de Joel, Sandro e Inácio, dona Vinólia começou cedo. Em plena segunda-feira, às 11h, ela estava na terceira garrafa e já revirava os olhos e a língua. Na cozinha, frango cru semi temperado, uma cebola cortada ao meio, faca suja, arroz lavado na peneira. Resquícios interminados de um dia que aparentemente se iniciara certo, cotidiano.

Os rapazes aportavam na casa da mãe diariamente para filar o almoço antes do serviço. Mas hoje não haveria o que comer. Dona Vinólia já não respondia pelos quitutes que planejara preparar. Surrupiava a atenção dos três, atônitos, quando tentava pronunciar qualquer coisa ou ensaiava assoviar. Que fossem ao inferno os filhos imbecis. Que a deixassem ali, aposentada deles, desquitada do trabalho e viúva de sua razão. Hoje, Vinólia se escondeu da saudade, com cerveja.

01 janeiro 2012


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Nair

Nair prepara o jantar. Pela manhã, levou as meninas para brincar no foguete do Parque. As duas bonitinhas descansavam as pernas grossas no sono vespertino. O cheiro de bisteca invade o apartamento recém-comprado. Nair se pega divagando se cheiros fortes assim entram no taco da sala e ali se instalam para sempre. Passam a fazer parte da história do lugar. Aqui deve haver registro de frangos, carnes, doces de tacho – alguém faria doce de tacho em um apartamento tão pequeno? – e também de produtos de limpeza inadequados. Aqui e ali se vê uma pequena mancha.

As meninas acordam. A mãe tem que banhá-las, banhar-se e vigiar o fogo. São poucas horas até o primeiro jantar do ano. Nair desperta do pensamento sobre os tacos. A caminho do varal, para pegar as toalhas, faz uma resolução que considera genial: preparará um doce de abóbora este ano. No tacho.