31 dezembro 2012

365/365
Maria

Foi comprar fermento na padaria da QNM 22. Na volta, como que atendida por um pedido de ano novo ainda não feito, ouviu Miguel chamá-la: "vem me dar um abraço de feliz 2013". Desceu da bicicleta, com a sacolinha na mão. O amigo passou os braços fortes por suas costelas e a suspendeu no ar. Trocaram os cumprimentos tradicionais ao pé do ouvido. Ele roçou a barba no pescoço dela. Desceu a mão até o coz do shortinho e, como quem não tem algo melhor pra fazer, colocou os dedos. Ela tentou beijá-lo, mas ele desviou, detendo-se, concentrado, a alegrar o fim de ano da amiga. Virou-a com habilidade, tocou os seios e a fez arfar. Sem avisar, parou. Beijou-a no rosto e disse "vá pra casa". Ela sorriu.

30 dezembro 2012

364/365
Bernardina

Esquecida. Perde dúzias de óculos todos os anos, chinelos, lenços, chaves, canetas, datas. Lembrou-se de comprar um calendário 2013: "sou tão esquecida, preciso de calendário". Em casa, viu que tinha esquecido que já havia ganhado dois. Esquecidos são assim, gastam mais e perdem mais tempo. Ainda em novembro, inseriu no celular o compromisso de fazer uma limpeza de fim de ano até o dia 30. "Graças a deus, senão não ia fazer!". E encontrou o telefone do rapaz que conheceu no caixa do supermercado há meses - nunca ligou... e ele poderia ser o homem de sua vida -, a coleira de Fulô, o guarda-chuva pink que adorava e nada menos que duzentos DVD com seus filmes prediletos. Saldo positivo. Decidiu que vai dar dois calendários de presente e convidar o rapaz do supermercado para passar o reveillon com ela no sofá, chorando e rindo, com pipocas.

29 dezembro 2012

363/365
Josefa

Conheceu um chileno, como um presente de fim de ano. Louro grisalho, magro, bem humorado. Rodou por Belém inteira com ele, ofereceu comidas típicas, botou o sexo em dia (quantos anos!). Adorou voltar a beijar. Apaixonou-se sinceramente por Ricardo e acha que ele por ela. Têm gostos muito parecidos e rotinas calmas; expuseram planos de viverem juntos. Mas faz duas horas que ele levantou da cadeira - assistiam a um filme antigo - e disse que ia comprar cigarros. Já chorou alguns litros, num pré-desespero-auto-comiserativo típico dela.

362/365
Edma

Minha empresa é sucesso. O lucro vem crescendo, os nossos serviços são referência no bairro, minha equipe é integrada, colaborativa, focada. Mas, céus, por que ninguém nunca quer fazer amigo secreto? Quando proponho, um assovia, uma olha pro alto, outra rabisca alguma coisa, outro me olha fixamente e diz, com uma sinceridade polida: não vai dar, já tenho compromisso.

27 dezembro 2012

361/365
Alzira

Começou aos 12, com dois garotos. Ela mandava e eles obedeciam. Em algum tempo, hormonalmente não poderia ser diferente, começaram a desenvolver brincadeiras sexuais na mesma linha: ela, rainha; eles, vassalos. Hoje, Alzira sustenta os mesmos seios enormes, a mesma boca sensual que tantas ordens despejou aos meninos da infância, um corpo ainda muito atraente, mas uma ojeriza a sexo. As amigas só falam em Grey e ela se entedia. Tem 40, é solteira e abstêmia.

26 dezembro 2012

360/365
Zenaide

Enrolada em si, encolhida e suada, entre a caixa d'água e o muro, via a sombra do monstro, que se arrastava devagar. Se não cria em deus, pediria a quem para tirar por milagre de seu corpo qualquer odor que atraísse o bicho? Mas pedia, pedia, pedia - e com fé. Se fosse fã de thrillers, poderia até imaginar uma música terrível de suspense ao fundo. Mas o silêncio só era quebrado por um pagode longe, longe, talvez na rua da baixada. O monstro movia a cabeça lentamente à sua procura e dava passos pesados que davam a ela a localização exata dele. Zenaide tremia. Da boca pingava sangue de toda a família dela, que ele tinha acabado de matar. Faltava uma.

359/365
Ellen

Arrependeu-se de ter tido vontade de resgatar o passado e ir à cidade dos pais. Quando chegou com o menino, já adulto, todos diziam: "nem parece neto do Juvenal. Parece filho". E aquilo fazia eco, como que para torturá-la. Grávida do próprio pai, fora expulsa de casa por ele e pela mãe: "virou vagabunda, foi? Tá dando pra qualquer um na rua?". Na rua? Queria ter respondido à mãe que não engravidara na rua, que havia sido o próprio pai que a estuprara. Até o retorno à cidade, ninguém tinha tido notícias suas ou do menino, que ela criou com muito cuidado. E ele, irmão/filho, cuidava dela também e, como se intuísse desgraça, nunca ousara perguntar pelo pai.

24 dezembro 2012

358/365
Maria Cláudia

Comprou velas, luzes pisca pisca, árvore de plástico, bolas coloridas, ave temperada congelada, fios de ovos, passas e um espumante. Trocou o gás. Chamou o Adalto para fazer as gambiarras. As paredes vão ficar descascadas mesmo, paciência. Mas, logo mais às 18h, quando chegar, enquanto o forno esquenta, vai fazer o faxinão no barraco. Convidou a vizinhança toda, mas poucos virão. Vai esperar chegar perto da meia-noite para telefonar para os pais, os irmãos, os primos, os tios, a família toda em Mossoró.

357/365
Ticiana

Aproveitou as férias. Andou de metrô em Brasília, visitou o Catetinho. Ganhou da prima uma saia jeans, dois tênis e uma blusa roxa. Foram ao shopping comprar calcinhas e um panetone. Estava perto do Natal e ela se sentia realizada. Esquecera sua terra. Na volta para a Ceilândia, passaram na casa de dona Juju pra tomar os passes. Fez perguntas e foi embora sem respostas. Vai esperar a virada do ano e comprar passagem de volta.

22 dezembro 2012

356/365
Diná
Feia, desceu do carro com bolsa, sapatilhas e blusa combinando – amarelas. Um short jeans largo e desengonçado, com uma lavagem de 1980, cuja suposição de sensualidade ignorava as canelas finas. Tinha os ombros arqueados, os olhos fundos dos quais não saía brilho algum e duas bem torneadas bolas de blush nas bochechas. Cabelo sujo. Andava sorrindo, ajeitando a bolsa, sem olhar ninguém. Absoluta.

21 dezembro 2012

355/365
Augusta

Não me respeitam. Desde que estou presa a esta cadeira, não opino, não me ouvem, não decido no que gastar nem mesmo o dinheiro da minha pensão. Fazem procedimentos de higiene quando bem entendem. Passeios com banho de sol quando lembram. Talvez já tenha completado uma semana aqui, trancafiada. Comida nos horários convenientes. Se manifesto fome, dizem que devo esperar um pouco. Fazem conchavo, já os peguei cochichando. Ratos.

354/364
Eva

Me dê um dinheiro? Então algo pra comer? A senhora viu que eu nem tenho chinelo? Não se importa, né? Também nesse carrão, né? É bom ser rica? Isso aí é um ipad? A senhora não deixa eu mexer, né? Nem adianta pedir, né? Não tem nem um biscoito?

353/365
Valda

Deu queixa e entrou no programa de proteção da Maria da Penha. Trocou de telefone, largou apartamento, pai e mãe. O nome está em processo de mudança: talvez Kátia, talvez Narilu, talvez Telma. Pediu sigilo na transferência na CAIXA e foi trabalhar na agência Chico Mendes, um barco-banco, no Amazonas. A situação crítica provocava nela uma sensação que ela conceituou como adrenalínica, que misturava medo e excitação. Sim, era estudiosa, teórica. E, sim, estava, enfim, no centro das atenções de muita gente, apesar de clandestina.

18 dezembro 2012

352/365
Socorro

Nasceu sem as mãos. Não sente falta. De vez em quando se pega pensando o que faria se, em vez das mãos, lhe faltassem as pernas. Agradece aos seus orixás e pede veementemente que a mantenham inteirinha tal como nasceu, que a protejam de eventuais acidades. Ui, nem quer cogitar. Adora correr e dançar.
351/365
Alessandra
Tudo na mala e mamãe tem coragem de me perguntar o que quero de Natal. Nada, minha linda, só que você venha comigo. Aluguei uma casa em Alto Paraíso.são doze comigo e a senhora não? Por favor. Disse pra eu esquecer, que essa coisa de fim do mundo é a maior baboseira que já ouviu. E eu tive que aprender, assim na marra, que cada um segue o seu caminho. E o de mamãe, parece, é esse: morrer junto com grande parte dos humanos da Terra, ainda que avisada. Pobre, mamãe.

16 dezembro 2012

350/365
Olga

- O que é isso?
- Não pude deixar de te notar, desculpe.
- Mas por que você está vestido assim?
- Ué, eu tô fazendo um bico de papai noel ali na galeria.
- Ah, ufa. Achei que era louco.
- Acho que sou mesmo. Porque, mesmo sem ter um centavo, comprei um presente pra você.
- É... um anel... que lindo.
- Olha, não é de ouro. Mas eu juro que vou te dar um anel de ouro um dia. Basta que você me aguente por uns doze ou treze anos.
- Você é engraçado.

349/365
Lilly

- Você vem sempre aqui?
- Há três anos, querido. Trabalho aqui.
- Ah, eu não sou bom com essa coisa de cantada.
- Nenhum homem é.
- Acha?
- Acho. Já vi você rondando a loja. Me achou bonita?
- Achei.
- Qual o seu nome?
- Alex. E o seu?
- Lilly. Quer me chamar pra um café?

348/365
Maíra

- Somos amigos, Acácio. Não dá.
- Por favor, me dê uma chance.
- Não.
- Eu sou o cara perfeito pra você.
- Não.
- Sai comigo hoje?
- Não.
- Tenho ingressos pro Katinguelê.
- Ah... ninguém tem ingressos pro Katinguelê.
- Eu tenho.
- Droga. Está bem. Só hoje.

13 dezembro 2012

347/365
Gláucia

- Daniel Euzébio, por favor?
- Pois não. Daniel.
- Bom dia, Daniel. Aconteceu algo estranho. Estive numa reunião aí na prefeitura e, quando voltei para o carro, tinha um cartão do senhor lá. Departamento de Tecnologia da Informação. É algo que posso ajudá-lo ou o cartão foi parar lá por engano?
- A senhora estava com uma blusa muito colorida? E tem cabelos negros?
- Sim.
- Ainda bem que ligou. Eu preciso lhe dizer uma coisa.
- Pois não.
- Com todo respeito, a senhora é linda demais.
Engasguei.
- Como?
- É isso. Reparei que usa aliança, mas não pude deixar de manifestar meu interesse. Achei a senhora, com todo respeito, deliciosa.
- Rapaz, quantos anos você tem?
- 29.
Desliguei.

12 dezembro 2012

346/365
lia

- quer almoçar?
- desculpe?
- você aceita almoçar comigo?
- eu não conheço você.
- Valério Nazar. Acabei de dar essa palestra e tô com fome - sorriu.
- ah, não assisti... quer dizer, cheguei no finalzinho e...
- você tem compromisso?
- eu estava indo nadar e...
- estava? Ótimo - me pegou pela mão. - almoce comigo.
- ah, tá legal. Vamos.

345/365
Júlia

Observou que discursos inclusivistas são aqueles em que os proferidores chamam constantemente o espectador a compartilhar da sua realidade: "entende?", "não é?", "nossos tempos", "nossos filhos". Só que Júlia não é uma deles. A duras penas, ingressou numa universidade por cotas. É negra, pobre, parcialmente surda, solteira, sem filhos, sem casa própria, nem mesmo um bom emprego. Irrita-se se um professor diz "quando contratamos um técnico para consertar o nosso notebook" ou "a mensalidade da escola dos nossos filhos". Não, ela não é uma "nossa".

344/365
Gerarda

Resolveu puxar assunto pelo calor. Posso sentar com você? Pode. Tá quente, né? É. Comeram em silêncio. Ela ensaiava se poderia abordá-lo e como. Enchia a boca, mastigava e, quando achava que sentia coragem, enchia a boca de novo. Em um momento ele lhe sorriu, de boca cheia, e só. Era lindo, pele alva, olhos pretos e redondos, gorducho corado. Acabou. Obrigado pela companhia. E ela, de boca cheia, nem pôde responder.

09 dezembro 2012

343/365
Suelen

Foi sábado da semana passada. Costurou as encomendas até as 14h. Almoçou feijoada de feijão mulatinho. Lavou a louça da casa coletiva e disse que ia voltar ao trabalho, mas só até as 18h. Foi vista na praça, a caminho da casa de Aína - grande amiga - ou da cachoeira. A queixa foi registrada, mas a polícia de Monte Verde só começou a se movimentar agora. Suelen vestia blusa e saia estampadas de flores, chinelos de couro, usava o cabelo preso no seu típico rabo amansador, tem cinquenta e dois anos, mas aparenta mais, é muito branca e tem uma tatuagem no braço - a letra J e um coração -, usa óculos de grau e não tem motivo nenhum para nos deixar.

08 dezembro 2012

342/365
Preta

É retraída. Caminha com os ombros erguidos, sovacos travados. Os braços balançam como se ela estivesse sem ar. Balançam em decorrência do movimento, que é apressado, mas sem graciosidade. Os cabelos seguem o mesmo modelo de resposta à gravidade. Os óculos disfarçam o que há de pior - um olhar sem brilho, a pele sem cor. Preta não tem cor. É magra, não rebola. Ninguém sabe se é inteligente, esperta, boa de papo. Mas, ao caminhar, o corpo esquece tudo que é bom. Caminha com fome, pressa e incômodo. Envergonha-se.

07 dezembro 2012

341/365
Nicole

Estou quase terminando meu curso de esteticista. Quero deixar de ser manicure, devolver o Bolsa Família, ter conta em banco e direito a licença saúde. Aprendi que essas coisas são coisas de cidadania. Coisa importante para fazer um país melhor. Dá vontade de rir. Progredir eu até quero, sim, mas quero ajudar meus vizinhos, que sempre me ajudaram. Não vou sair do bairro, vou limpar a pele dos meus amigos fiado e vou emprestar meu cartão de crédito para os mais próximos. E vou fazer de tudo para o Jonys voltar pra casa. Nem que eu tenha que sustentar as farras dele. Por que eu devo seguir conselho de banco, de feminista ou de economista do Fantástico? Confiança parece não ter a ver com cidadania.

06 dezembro 2012

340/365
Lígia

Amanhece na cidade luz. Lígia faz o cabelo. Recolhe uma roupa meio limpa do chão do quarto, acende o cigarro. Liga o tablet e se comove com a morte de seu conterrâneo, exaltada pelo Le Monde. Não chora. Telefona para o pai. Ocupado. Veste as meias, calça a botina. Sai. Vai viver mais uns oitenta e quatro anos.


339/365
Ivonete

Tem pernas cansadas, doídas. Impaciência. Quer se comover com palavras, ensinamentos de uma vida que se mostrou prática e rica. Sabe ser caridosa, doce, cuidadora, simpática e inteligente. Mas, caralho, como as pernas doem.

04 dezembro 2012

338/365
Áurea

Sozinha, arrumou um peixe que logo morreu. Recomendaram-lhe um cachorro. Soou uma boa ideia. Achou um pequeno, bonitinho, "impossível não se apaixonar", repetia a moça da pet. Áurea acreditou e arrasta, por três meses, o convívio com o animal. Odeia-o a cada instante, a cada rosnar ou latido. Detesta comprar ração. Olha nos olhos do bicho e se controla para não lhe dizer poucas e boas. Contem-se. Ele, por sua vez, a ama inteira. E, diferente do que uma companheira de apartamento ou um namorado, não pode simplesmente romper e mandá-lo embora.

337/365
Fúlvia

Foram poucas as vezes em que estive perto de ter uma relação sexual. Juventude longa e enfadonha, em meio a bordados e cursos de economia doméstica. Agora, velha, me viciei em filmes pornográficos. E, ah, confesso para mim: queria putaria na vida. Chupar, me deixar chupar, oferecer orifícios, me sentir livre e atriz. Queria sobretudo ter feito sexo anal.

02 dezembro 2012

336/365
Ulda

Dezembro chegou. Estou cansada, com tristezas e frustrações acumuladas. Deixei de trabalhar com o que mais gostava, estou devendo dinheiro a muita gente, meus gêmeos reprovaram, meus pais faleceram, perdi uma grande amiga. E o Haroldo, de quem eu realmente precisava me livrar, não me solta, apesar das brigas, das ofensas, dos tapas trocados. Haroldo é um merda, me levou pro buraco, não me ajuda, não me escuta. E segue ao meu lado, companheiro. Desgraçado.

01 dezembro 2012

335/365
Waldiana

Câmera fotográfica, celular e ipad em uma das mãos. Na outra, filmadora, bolsa e sacola de bebê. Dois filhos numa das melhores escolas de São Paulo, duas maratonas para conseguir o melhor lugar para registrar as apresentações de fim de ano. O mais velho de palhaço já consegue fazer toda a coreografia e a mais nova de boneca Emília arrisca-se em passinhos descompassados. Entre cotoveladas e um sapato temporariamente perdido, consegue. Ainda hoje, posta para os amigos e familiares. Cumpriu seu papel de boa mãe. Na volta para casa, Waldiana sua, aperta os cintos de todo mundo, oferece água e limpa o nariz da pequena.