29 fevereiro 2012

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Cândida

Acordou às quatro. Um dia desafiador. Fritou coxinhas, risoles e quibes. Poucos, para começar. Andou até o espaço do seu Caetano. Recebeu olhares furiosos: vasilha, cara dela, vasilha, cara dela, vasilha. Recuou cerca de um metro. Abriu a banqueta e pôs a vasilha sobre as coxas. Seu Caetano contrariado - mocinha insolente, safada, quer melar o meu negócio. O primeiro freguês - bom dia, seu Caetano; cafezinho. E, hmm, ele olhou para a esquerda. Ela abriu a vasilha. Ótimo. Escolheu um quibe. Voltou para perto do seu Caetano para jogar conversa fora. Mais um freguês; mais um; e outro; e outro.

Alguns pediam mais café para acompanhar o salgado. Ou café com leite, mais caro. E, aos olhos do seu Caetano, a moça insolente passou a ousada, corajosa e, ele estava rendido, parceira. Avaliou a alegria dos fregueses - é sua filha? E ele tendia a responder que sim porque seria um gênio se, sozinho, tivesse tido essa ideia: complementar o seu cafezinho com algo de comer. Mas, às nove e meia, recolheu seu banco e a mesinha e apenas deu um meio sorriso para a moça. Era talvez o seu modo tacanho de dizer obrigado. Amanhã perguntará o seu nome.

28 fevereiro 2012

59/365
Alice

No buço, pequenas gotas. Quando dava uma pausa no falatório, soprava na direção dos seios e me ouvia com toda a sua atenção. Prendeu os longos cabelos, molhados de suor, com dois grampos. As axilas também estavam úmidas. Era apaixonante vê-la falar de si e de sua vida natureba, coisa que nunca me interessou. Perto dela, eu esquecia carne e refrigerante e chegava a ter desejo de provar aveia, leite de soja, biscoitos de chuchu. Virava o rosto, alongava o pescoço. Esguia, iogue. Senti vontade de tocar aquela nuca. Beijar. Lamber o suor. Mas Alice não era uma mulher. Era uma fonte, uma entrevistada, um ícone. Em casa, demorei a conseguir escrever de modo isento, neutro. E passei a sonhar com aquela tarde todas as noites. E para sempre.

27 fevereiro 2012

58/365
Joana

E eu sou besta? Dei a mão assim e vi que ele não ia parar. Acelerou, menina. Eu fiz que ia me jogar na frente e ele pisou no freio, um barulhão. Aí eu atravessei bem devagar. E ele ficou puto, foi me xingando. "Velha louca". E eu sorri. "Velha louca, vai pro asilo". "Vou, mas você vai comigo", eu respondi. A lei não existe? Não é clara? Os carros têm as prioridades deles. Na faixa de pedestres, é dos pedestres. Se eu balancei a mão, era a minha vez, ou não era? Pois ele não queria parar. Aí eu pulei assim, sabe como é? Fiz que ia, mas não fui, porque eu também não sou louca de me jogar na frente de um carro. Mas foi bom pra ele se assustar. Aí ele parou, menina, mas puto. E gritou "Velha louca, vai pro asilo". E eu: "Vou, mas tu vai comigo". Porque a gente não pode deixar eles pensarem que podem tudo. Não. Nesse país tem lei, minha filha. O pedestre tem prioridade. Fiz o sinal e ele acelerou. Como é que pode? Aí eu avancei. E ele pá - freou. Mas foi com tudo. Cantou pneu. "Velha louca". E eu sorrindo.

26 fevereiro 2012

57/365
Gabrielle

Não me lembro de ter existido um tempo sem balé. Pendurada num dos peitos de minha mãe, acompanhava atenta os movimentos unilaterais dela, ensinando crianças e moças. Suavidade, doçura, beleza. Não tive oportunidade de me apaixonar por essas coisas - um balé para espectadores. Minha vida era a de bastidores, de coletes costurados no corpo, de maquiagem em andamento para cobrir espinhas enormes, de toucas de meia de seda, de pés feridos e calejados. Gente ensaiando dia e noite, gente chorando de dor ou de desespero, gente brigando - geralmente minha mãe, distribuindo ordens. Antes de saber andar, correr, brincar, eu já sabia dançar. E com sapatilha de ponta. O pescoço sempre alongado, peso controlado, cada mudança de braço, rodopio, estiramento de perna devidamente controlados e cronometrados. Contabilizo pouquíssimas vezes que me permiram comer chocolate ou brincar num parquinho de praça. Além disso, não sei o que faria se precisasse depositar um cheque no banco ou comprar uma passagem aérea. Sempre existiram assessores pra isso. Não acredito em deus, nunca fui a igreja alguma; sei fazer coques perfeitos, me maquiar e chorar sozinha, depois de cada apresentação e antes dos aplausos finais.

25 fevereiro 2012

56/365
Maria Ruth

Fará vestibular para pedagogia e será aprovada. Aluna dedicada, será convidada a participar de um grupo de pesquisa sobre educação inclusiva. Apresentará trabalhos em congressos, escreverá artigos, terá reconhecimento. Mas não se casará. Conhecerá um rapaz e terá um namoro de duração mediana, que acabará em um outono. Sofrerá, mas se dará conta de que nunca gostou dele. Será professora e pesquisadora requisitada. Descobrirá uma forma de inclusão inovadora, com bons resultados. Dará palestras no Brasil, na Europa, nos Estados Unidos. Em paralelo, esperará e procurará o amor da sua vida. Pro resto da sua vida. E ele não virá.

24 fevereiro 2012

55/365
Virgínia

Acordou mudada porque dormiu dizendo para si que ia mudar. Disposta, separou calças largas, tênis e grandes vestidos ou blusões, dentro dos quais escondiam-se bunda, coxas, seios parisienses. Tudo muito exuberante. Experimentou o único - e quase novo - sapato de salto em verniz preto. Andou um andar vegetal. Sorriu de si, sem espelho. Quanto às bijuterias, resolveu que precisava de algumas novas. Jogou fora minibrincos, colares coloridos, prendedores de cabelo, bolsas, meias infantilizadas, discos, fotos e livros, livros, livros. Comeu uma maçã, catou uma carteira charmosa; uma camisa masculina ganhou um cinto rude e virou um vestido curto. Calçou o sapato de verniz. Soltou os cabelos. Foi andando - até que se acostumasse lidaria bem com olhares incrédulos - ao trabalho para pedir demissão. No caminho, uma loja de acessórios e uma cafeteria. Eis a nova Virgínia.

23 fevereiro 2012

54/365
Amanda

"A senhora não vai contar pra ninguém", mas a paciente ao lado já tinha ouvido tudo e a velha pintada fez um sinal para a atendente. Viu que não adiantou e começou a se justificar. "Eu preciso, Amanda, eu preciso. A sua colega ali foi que errou da outra vez". Em seguida, pediu duas folhas em branco. Amassou uma em volta do que parecia uma calcinha úmida, reforçou com um elástico e pôs na bolsa. Pegou e guardou algumas vezes os documentos, mostrou pra Amanda. "Olha aqui a minha idade. Coloque aí 'uso contínuo', senão vou ter que voltar aqui de novo". Mostrou também o cartão da Unimed. A moça obedecia e tentava ser discreta. Imprimiu o novo receituário. Forjou uma assinatura qualquer acima do nome de um médico com CRM, que talvez até exista. "Agora vá embora e não volte mais", sussurrou. A paciente ao lado com os olhos vidrados. A velha enrubesceu-se: "Amanda, eu também fico muito contente em revê-la. Obrigada, viu, querida. Por isso que eu gosto de ser atendida só por você". Foi. Deixou a segunda folha em branco intacta sobre a mesa.

22 fevereiro 2012

53/365
Milena

Tudo tem explicação. Ele queria dinheiro - pensão, seguro - e paz. Talvez. Agora, nem um, nem a outra. Nem a mulher que escolheu como companheira, nem a amante-motivadora, nem o irmão-cúmplice. Vigias. Ele se tornou perigoso, psicopata, assassino cruel. Uma vida amena, batalhada. Tínhamos nós dois, um podia contar com o outro. Brigávamos, mas quem não briga? Tomei banho, me vesti. Ele sempre fazia o café muito cedo. Voltou para o quarto e eu chamei por ele, já abrindo o portão. Não consegui entrar no carro. Me atingiram e eu nem tive tempo de olhar a cara do criminoso. Mas escutei - ele pediu, orientou, sussurrando: "aqui no ombro, ó, aqui". Depois os gritos, a encenação. A dor que eu senti se transformou em nada. Nem pena, nem ódio. Tudo tem explicação.

21 fevereiro 2012

52/365
Giovanna

Cansei de ver meus pais brigando. Mas isso não me atinge, sou indiferente. Sou simpática, cumprimento as pessoas educadamente. Me concentro na minha vida, nos meus cadernos novos, escola nova, colegas novos. Meus pais me dão o que eu quero e até o que eu nem sonhei em pedir. Não preciso ter desejos. Mal o ano começou, já ganhei todas as atenções, professor particular de matemática e física e promessas de ir a Gramado em julho e Disney em janeiro. De novo. Falo inglês. Ainda não menstruei, não me interesso por namoros. Converso com meus amigos sobre adesivos, desenhos animados e coisas de escola. Ouço músicas que tocam, não escolho, não tenho um estilo preferido, nunca comprei nada no itunes. Em casa, nada faz sentido. Durmo e como. Durmo muito e como muito. Meus pais sorriem muito. E, por mais que eu erre - se é que eu erro -, o amor que recebo não muda.

20 fevereiro 2012

51/365

Maristela


Num programa de TV, desses que promovem encontros, foi dispensada. Saiu sem pretendente. Em festas, shows, ensaios, volta para casa acompanhada ou sozinha, meio a meio. Viveu com Jander no Alto do Cabrito até dois anos atrás, mas terminou o namoro e, desde então, nada. Só pequenos encontros com homens decadentes e feios. Os búzios não se pronunciam. Uma justificativa que usa para si não tem a ver com beleza, mas com idade. As rugas e manchas impressas na face combinam com a flacidez de pescoço, braços, barriga, bunda, pernas. O mundo anda muito focado na juventude, conclui. Mas no carnaval, na sua cidade natal, acompanha maquiada, enfeitada, alegre e confiante os Filhos de Gandhy. Ganha colares e beija de língua homens enormes, bonitos e cheirosos, com todo o amor que guarda dentro de si.

19 fevereiro 2012

50/365
Ariadne

Passou no concurso dos Correios. Passou a entregar cartas, uniformizada, e a ter dignidade, tíquete, plano de saúde. Mas o que adiantou? Passou por uma quadra e torceu o pé, rompeu tendões. Passou pelo Santa Lúcia, Santa Luzia, Santa Helena. Passou horas e horas na espera. Procedimentos que precisam ser autorizados. Calção. Passou cheque sem fundo. Tenho dor. Cruzou os braços e foi entrevistada, com o pé inchado. Passou no DFTV.

49/365
Marcela

Estreou na Mocidade do Gama, na bateria. Dedicada, filha da cidade, era respeitada e admirada na comunidade. Criava dois meninos sozinha, dona de casa, rainha do lar. E era envolventemente carnaválica. Preparava-se o ano inteiro, costurava fantasias. Tocava surdo, repique e bumbo. Mas descobriram a moça. Roupas grandes, largas pra quê? Bumbum. E, em 2012, de sandálias novas, virou rainha da bateria.

17 fevereiro 2012

48/365
Dália

Era lindo – duas covinhas no rosto, ao sorrir. E eu sorria. Gargalhava. Duas covas. Eu e meu amor. Tudo pago, porque a família, apesar de ser família, não tem nada com isso. Canto direito do cemitério sem canto, espiralado. Onde se vê o pôr do sol. Sou romântica, sempre fui. Por isso vacilo. Parece que careço de coragem pra apertar o gatilho. O filho da puta eu já matei. Sobra apreço, medo, autoestima. Falta dar cabo de mim.


47/365
Cristina
 
Anunciava pelo megafone: “este carnaval será diferente, pessoal. Vamos ajudar a salvar as nossas crianças!” Era o mesmo anúncio de todo ano e a comunidade se perguntava o que seria diferente, afinal. Mas ajudava. Um doava chuchus, outro cenouras, macarrão, costelinha, batata, couve. A sopa das crianças que vagavam pela Sé era o que dava sentido ao carnaval de Cristina. Ela mesma mexia o panelão, arrumava tudo, dirigia a kombi e a equipe de distribuição. Na madrugada, enquanto se viam foliões bêbados e desorganizados voltando dos barracões para casa, ela abordava meninos e meninas na praça. Oferecia sopa e amor.

15 fevereiro 2012


46/365
Eugênia

Ele sai antes de mim, deixa o café pronto às 4h. Vai treinar. O time está na série A2 do campeonato pernambucano. Atrasa salários, não fornece alimentação durante os treinos nem dinheiro pro ônibus, nada de massagista, médico, equipe técnica. Mas ele está lá, firme, por paixão e compromisso. Chega por volta de meio dia, dá o almoço dos meninos e leva pra escola. Volta, come e dorme. E eu, o dia todo na rua. Vendo picolé. Às 7h pego o carrinho e vou pra Boa Viagem. Já não agüento minha própria voz, ritmada: “olha o picolé. Tem de uva, coco, morango, graviola, castanha, nata, chocolate e limão”. Quando chego, ele está me esperando, banhado, cheiroso. As crianças limpas, jantando e assistindo à novela das sete, o dever feito, prontas pra dormir. Enquanto eu janto, ele me conta como foi o treino, cheio de esperança de que, este ano, eles sobem para a A1. Sorrio e confirmo, sem acreditar.

14 fevereiro 2012


45/365
Rafaela

Custava a dormir. Pela TV a cabo, assistia a programas bizarros sobre gente bizarra que faz coisas bizarras, como colecionar unhas, arrancar tufos de cabelo, lixar os pés até ferí-los, mascar embalagens de balas ou chicletes. Suas pequenas manias de limpeza, o tique de passar os dedos pelas axilas e cheirá-los constantemente, o fato de gostar de guardar tampas de garrafa pet, de cheirar gás de cozinha e de telefonar para pessoas que já passaram pela sua vida, fingindo ser vendedora de algum produto, eram irrisórios diante do que se apresentava nos programas. Essa conclusão lhe proporcionava alegria e alívio. Por isso era a maior espectadora dessas produções. Por isso não dormia. Por isso era normal.

13 fevereiro 2012


44/365
Tathyanne

Era panela batendo, vizinha cantarolando (até afinada) e esfregando laje. Dez e meia da manhã. Segunda-feira. Lavou o rosto, ajeitou o mega hair. Chupou uma manga. De shortinho e top, sentou no batente da porta com acetona, algodão e esmalte pra retocar as unhas vermelhas. Cabeça longe. Respondeu com cara de nojo pra um ou dois “aêê, gata, que saúde” e entrou pra esquentar o almoço. Tomou banho, comeu, escolheu a calça clara com glitter, juntou as pulseiras do mesmo tom da camisa do uniforme, plataforma branca, rímel, gloss. Revirou-se na frente do espelho. Ajeitou o piercing. Gostou do resultado. Pegou a bolsa e desceu. “Copa/Leme/Botafogooo. Entra aí, princesa”. A mesma cara de nojo. Tirou o chiclete da boca, com um cuidado sensualizado. Cruzou as pernas. Encostou a cabeça na janela e lembrou do baile com o Maicon ontem. Fechou os olhos pintados de azul, sorriu e passou as mãos pelas coxas, lembrando das mãos dele. Até esqueceu o calor.

43/365
Otília

São quarenta e nove anos juntos. Ele já me aprontou tanta coisa, mas eu não guardo mágoa. Certa vez, achando que podia tudo, me arrumei e, antes de ele chegar do serviço, levei as crianças ao parquinho de diversões, ao lado da igreja. Ele foi atrás de mim. Me levou de volta para casa, sem violência. No caminho, apenas disse: parece uma puta com esse batom. Ao chegar em casa, pus os meninos na cama e chorei. Demorei anos para digerir essa culpa. Tive dificuldades para trabalhar fora, pagar meus bordados, minhas coisas. Agora ele está aqui deitado ao meu lado, entubado, mas consciente. Eu lhe conto histórias, falo do passado. O tumor, na próstata, está quase do tamanho de uma laranja, mas não faz parte dos nossos assuntos. Quando narro algo engraçado, como no dia em que ele despejou um balde de água suja e pano de chão na própria cabeça, ele sorri com a boca imóvel e os olhos brilhantes. E me retribui as memórias, as preces e a dedicação com uma lágrima.

42/365
Kátia

Quero anunciar que estou de partida para a Alemanha. Ensaiei. Metade deles sequer sabe que língua se fala por lá. São meus dezesseis primos, nove tios, três sobrinhos, pai, vó. Todos reunidos de novo, com duas panelas de galinha caipira, polenta, arroz, pão de queijo, farinha. Em uma primeira tentativa, elevei a voz, mas foi impossível. Só vovó me olhou e duas primas. Uma delas já sabe da novidade. Não vão entender. Sempre estudei música, mas ninguém foi muito de me apoiar. Com razão. Desde criança, participo de projeto social e toco violino. Mas sempre tive que estudar seriamente e cheguei a fazer cursos de auxiliar de enfermagem e recepcionista para garantir o sustento. Música é coisa de desocupado. Meu pai tentou viver de música na juventude, e até hoje canta muito bem, mas virou exemplo de fracasso. E eu uma reles iludida com esse universo. Mas ontem recebi a notícia de que fui aprovada num teste de bolsa para estudar lá fora. Alegria e aflição. Acho que vou esperar a prece antes do almoço. Vó há de me abençoar.

10 fevereiro 2012

41/365
Rebeca

Cabelos cheios e homogeneamente cacheados. Seriam considerados bonitos e sensuais se não fossem completamente brancos ou se não emoldurassem um rosto sujo e inexpressivo. Vaga pela Asa Sul inteira, mas é vista também no Setor Bancário, na Rodoviária, na Esplanada. Nada diz. É completa e saudável: tem mãos, pés – os dois. O tempo inteiro descalços e com unhas enormes, dando um aspecto de garras. Mas não anda, flutua. Sem pressa. Uma saia de tapete, amarada com um pedaço de cortina, uma camisa de botão amarela clara, uma ou duas sacolas de supermercado penduradas na mão. Elegante. Não fala sozinha, não xinga, não se envolve com outros, não rouba, evita pedir moedas. Apenas existe. E impõe à cidade limpa e planejada sua imagem aterrorizadora.

09 fevereiro 2012

40/365 
Lívia

- Perguntas fáceis, básicas: cores e estádio.
- Vermelho, branco e preto. Elzir Cabral.
- Duas alcunhas.
- Ferrim e Tricolário, entre várias outras.
- Uma torcida organizada.
- A minha: Falange Coral.
- Tranqüilo, né? Agora é pra valer, moça. Quantas vezes campeão cearense?
- Nove. E vinte vezes vice-campeão.
- Ídolo dos anos 80.
- Gesiel.
- Já participou do Brasileirão?
- Sim, seis vezes na primeira divisão; oito na segunda; doze na terceira. Melhor colocação em 1981, em 27°.
- Admitida.
Os gritos dos amigos, também torcedores, pareciam de gol. Levantaram Lívia, que sorria e chorava. Abraçou o marido, beijou os filhos. Que vitória! Conseguira ser admitida no Conselho Consultivo do Ferroviário, seu time. Em entrevista, declarou que trabalharia para realizar o seu maior sonho, com conhecimento, paixão e simpatia: chegar à presidência do clube. Primeiro passo dado.

08 fevereiro 2012


39/365 
Telma

Aos 24 anos, quando se preparava para engravidar, descobrira um câncer de colo de útero. Sempre cuidou da saúde, praticava vôlei, consultava periodicamente os médicos, menstruação regular e pouquíssimas gripes registradas ao longo da vida. Quimioterapia, retirada do útero. Curou-se. Programas de TV a procuraram, jornais, revistas. Em todos, recuperada, aparecia feliz e otimista – era o “exemplo” tão cobiçado como matéria prima para reportagens longas e positivas. Muito bonita e jovem, teve, com a tragédia, seus minutos de fama. Dois anos depois, fizeram questão de esquecê-la. Separou-se do marido, que queria ser pai, os cabelos cresceram fracos e opacos, engordou 64 quilos. Tem a certeza de que o câncer veio para matá-la, mas não foi capaz. Ela mesma pretende resolver isso. Em algumas horas.

07 fevereiro 2012

38/365
Leila
 
Ir à escola não era prazeroso como diziam que deveria ser. Xingava baixinho para que a tia, deitada na cama ao lado, não ouvisse: caralho. Lavava o rosto, reforçava o desodorante, escovava os dentes, ajeitava o cabelo duro como podia. Já de uniforme, preparava o café, cortava o pão, passava manteiga e sentava-se à mesa. A tia, ao acabar de rezar o terço, unia-se a ela. “Que aulas vais ter hoje?”. Matemática, física, português e geografia. Odiava todas essas e mais as outras. Odiava ir à escola. “Vamos ver se este ano não reprovas”. Consentia. Pegava os livros e cadernos e saía. No ônibus, lamentava. A ela bastava continuar a limpar a casa da tia, lavar as roupas, regar as plantas, ir à missa aos domingos. Não precisava de estudo para isso, mas a velha fazia questão. Um vestido novo costurado por ela mesma por mês e alguns trocados para picolés e, eventualmente, uma revista adolescente eram os luxos que preenchiam seus planos futuros. E só.

06 fevereiro 2012


37/365 
Susana

Exibia um vestido de colorido antigo. Piaçava e sabão caseiro. Esfregar o chão cimentado da casa era a sua maior alegria, aliviava tensões. Mas já não havia tensões. Ao longo dos anos, fora se tornando a única dona do apartamento térreo de dois dormitórios, banheiro, sala, cozinha e esse quintalzinho de lambuja, em La Habana Vieja. Amava o quintalzinho – ali fizera uma pequena horta. Desligava a mangueira e cantarolava, mal podendo esconder – de si – o sorriso. És mi casa, mi casa. O peso dessas palavras fazia uma vibração forte no peito, como se tambores fossem surrados ali mesmo. Conseguira um pouco de tinta para o quarto das crianças, ganhara de uma vizinha dois jarros pesados, onde plantaria rosas. O velho rádio ligado competia com o “tcha tcha tcha” da vassoura. E Susana misturava os movimentos de limpeza com o rebolado suave da nueva trova que escutava.

36/365 
Odete

O seu ídolo da juventude estava em estado grave num hospital de Nova Lima. Ela, uma barata tonta pela casa. Bebia água, ligava a TV, desligava. Ora queria notícias, ora queria evitar o pânico. Respirava, conseguia sentar-se. E logo recomeçava o vai-e-vem. Precisava fazer alguma coisa. Internet, notícias, traqueostomia, infarto. Telefonou para várias empresas de ônibus, fora do horário de atendimento. Queria ir até onde ele está, mas pra quê? Levaria flores? Calcinhas? Chorava. Uma voz lhe dizia “as pessoas morrem um dia”. Mas não ele, não o melhor cantor romântico de todos os tempos, o homem mais feio e sensual que já lhe cruzara o caminho, ainda que ela nunca tenha conseguido ir a um show (quando ele esteve em Cuiabá, ela caíra de cama. Teve dengue). Não conseguia dormir nem conter as lágrimas. Resolveu masturbar-se. Esperaria amanhecer para tentar comprar as passagens.


35/365 
Luzia

Enquanto dormia, sentiu uma dor terrível. Talvez no peito, talvez no baixo ventre – não conseguia identificar. Era sonho. Remexia-se. Acordou Jonas, que a viu suar e voltou a dormir. Via-se deitada numa maca, com médicos em torno de uma lâmpada tão aguda quanto a dor. Parou de se sacudir, experimentando uma espécie de alívio por estar nas mãos de profissionais. Mas essa sensação logo se dissipou. Abriu os olhos e viu-se no próprio quarto. Identificou o local da dor quando sentiu que sangrava muito entre as pernas. Pálida, lembrou-se que estava grávida e concluiu que perdia o bebê. Olhou para Jonas. Não conseguiu chamá-lo.

03 fevereiro 2012

34/365
Bruna

De repente, passou. Até ontem, durante muitos anos, já chegava ao cabeleireiro chorando, certa de que não iria gostar de alguma coisa. “O que aconteceu, minha linda?”, ele perguntava. E eu respondia “nada, querido, tpm”. E era tiro e queda: um lado ficava mais curto, a franja enrolava, as camadas davam um volume exagerado e eu saía aos prantos. Algo inconsciente saiu ou algo consciente entrou. Ou ambos. Ou ainda algum planeta se alinhou com outro e, cosmicamente, me lançaram influências. Boas influências. Hoje, cheguei ressabiada a um novo salão. Fui muito bem atendida, me ofereceram café e suco. “Essa moça aqui vai fazer as suas unhas”. Nunca vi. Em outros tempos, eu já anteveria cutículas feridas, bolinhas de ar no esmalte. Mas não. Sorri durante todo o serviço, conversei com a moça. Agora, vejo uma única unha lixada em diagonal. E acho graça.

02 fevereiro 2012

33/365 
Iara

Não me conformo com tanta gente reclamando da vida. Difícil é ser sereia nos dias atuais. Sair cedo do mar, pra não ser vista, apesar de querer dormir mais ou fazer hora na cama, ver um programa educativo às 6h da manhã. Esperar o rabo desaparecer, tomar banho de água doce pra tirar o cheiro de mar, passar muitos cremes, vestir uniforme, meia calça, sapato, escovar os longos cabelos e os dentes, usar perfume. Pegar ônibus, enfrentar um trânsito infernal até o Centro, caminhar rumo ao escritório. Às vezes, os colegas fazem questão de não responder ao meu “bom dia” – eu chego cheia de alegria, apesar de tudo. É terrível. E não é exatamente prazeroso receber representantes de empresas, arquivar documentos, atender telefone, ir ao banco, almoçar, voltar, trabalhar mais um pouco. Mas chega o fim da tarde. Recuso eventuais convites para um chope. Troco de roupa, dou uma corridinha na praia. Me dispo, coloco meu colar de pérolas e me despeço do sol, da areia. De joelhos, agradeço: odoyá, minha mãe. Olho em volta, não vem ninguém, mergulho. A caminho de minha casa, nado feliz e rapidamente para não perder a novela.

01 fevereiro 2012

32/365
Cecília

Pedante e orgulhosa. Lançava suas ordens à rua, porque empregados não tinha há muito tempo. Ela mesma lavava as camisolas de seda à mão. Usava as peças o dia inteiro. O mato à frente do casarão crescia e a pintura da fachada descascava. Rude, fingia para si que relia os clássicos. Um a um, retirava-os da biblioteca, soprava o pó e folheava. Enchia de água da torneira uma taça de champanhe. Quando aparecia algum dinheiro, comprava uvas, cerejas. Os parentes ajudavam como podiam. Almas boas que eram, relevaram rapidamente os coices que Cecília distribuiu por anos e anos e levavam frutas, pães, material de limpeza e higiene. Ela os recebia com indiferença. Vez por outra, pagavam uma conta. Puxavam assunto e eram brindados com a ausência da austera falida. Cecília definhava. Logo morreria, certamente. Mas, orgulhosa e pedante, jamais sairia de seu palacete decadente ou de seu imaginário pedestal.