31 outubro 2012

304/365
Lúcia

Fez mais do que delinear os olhos claros com vermelho fogo. Prendeu no cabelo um arranjo de contas e flores. Vestiu-se de guarany kayowá para, numa marcha, ajudar a ecoar a voz de seus irmãos. Vestiu-se de índia guerreira, fazendo com que as madeixas louras se apagassem. Não era mais Lúcia. Era mulher da mata, tinha uma causa por se dedicar e, afinal, como era gostoso irritar executivos atrasados pelo trânsito já confuso. Ayaya.

303/365
Nelma

Olha lá, a mocinha passando, um ódio contido. Pensa que ninguém percebe que aquele sorriso é falso, que ninguém sabe dos rangidos de dentes à noite. E de dia. Nasceu sem notar a indiferença da mãe.
O gosto metalizado que subia do estômago à garganta a fez lembrar do dia que terminava e a fazia intuir que agora era para sempre. Acordou cedo, tomou um banho, demorou para escolher uma das nada elegantes peças de roupa, comeu rápido, já preocupada com o tempo perdido. Poderia perder o ônibus. Terça. O marido a deixara sem carro hoje. Ônibus. Nada de preocupações com as vagas.

302/365
Paloma

Quando a tecnologia, enfim, permitiu o conserto instantâneo de erros da vida, um retrocesso: odeio o fato de que tablets não tenham ctrl+z.

28 outubro 2012

301/365
Donna

Bati o pé. Era a hora do meu almoço e o supermercado estava cheio. Já avisei logo: só vou atender até aquela senhora. Reclamaram. Depois quem se ferra sou eu, sem tempo suficiente pra engolir pastel e suco e pronta pra ouvir a bronca do encarregado ou a piada dos colegas: "almoçando fora do horário, Donna". Dona... nem da minha própria vida.

27 outubro 2012

300/365
Luciana

Luciana tinha sonhos, todos objetivamente alcançáveis. Queria terminar os estudos e ser caixa ou gerente de uma loja. Juntaria dinheiro para ter uma casa com reboco e paredes pintadas de branco, com jardim e um pastor alemão. No Rio de Janeiro. Não precisaria de carro, pois a casa seria próxima a um ponto de ônibus e metrô. Por fim, gostaria muito de se casar com o Fábio Assunção, motivo pelo qual se mudaria para o Rio.
Terminou o segundo grau no ano passado, partiu para Nova Iguaçu e arrumou um trabalho de atendente de serviços ao consumidor de uma grande loja de móveis. Quase plenamente realizada ficou quando conseguiu alugar uma casa de fundos. Rebocada. Pensa em adotar o vira-latas que vive dos restos dos moradores de sua rua, o Gorila. Conheceu Fábio Ferreira, borracheiro, que trepa muito melhor que aquele branquelo da Globo.

26 outubro 2012

299/365
Marinara

Meninas são chatas, falam demais, exigem coisas demais, respeitos, regras, regras e regras. Prefiro meninos. Gostam de soltar pipa, de ser soltos. Filas de carrinhos coloridos e bolinha de gude. Qualquer barco de papel e está resolvida a diversão. Reunem-se para falar bobagens e rir e contar segredos interessantes. Meninas competem pelos melhores papéis de carta, quem é a mais esperta, a que brinca melhor com sua Barbie. Falam umas sobre as outras. Fazem conchavo, fofoca. Saco. Meninas são um pé no saco.

25 outubro 2012

298/365
Fran

Foi bem nas 12 aulas práticas de trânsito, mas o seu grande feito - principalmente para esfregar na cara do irmão - foi permanecer imóvel em controle de embreagem, hoje, no subidão do Colorado. Queria gritar de alegria, mas sabia que deveria devotar toda a sua atenção ao que fazia. Qualquer deslize e o carro se moveria. O instrutor ficou feliz, deu os parabéns, tentou sacudi-la mas Fran permaneceu séria e concentrada. Do topo da cabeça descia uma gota de suor. Ela respirava fundo e lentamente. O antebraço tremia. As panturrilhas nem sentia. Começou a pensar no sufoco que seria sair da posição, minutos depois, quando o tráfego fluísse.

24 outubro 2012

297/365
Jane

Não pôde dormir. Provas finais do Colégio Militar e revisões para o vestibular. Na mesa da sala, fazia pesquisas, anotava pontos importantes, tomava café. Em um cochilo de vinte minutos, sobre os cadernos, sonhou que o Marcelo Serrado, trajado de jaleco e touca, lhe oferecia uma massagem nos seios. Ela disse que não, quando viu-se só de calcinha na maca. Ele insistiu e ela gritou pra ninguém. De volta aos livros, viu que havia acordado o pai e o irmão, que, plantados, assistiam Jane gritar com os cabelos desgrenhados e as mãos no busto.

296/365
Leopoldina

Tinha pelos e movimentos elegantes. Olhos mostarda. Lambia-se lentamente, sedutora. Imitava as mais impossíveis posições de yoga. Do pescoço pendia uma corrente de couro e um L metalizado brilhava. Único adorno. Inventava dengos e manhas. Bebidas e fina comida ao seu alcance. Espreguiçava-se, aborrecia-se, sentia-se dona do mundo. Não tinha planos, nem compromissos. Nem mesmo culpa.

22 outubro 2012

295/365
Florência

Ressentia-se por ter nascido justo na cidade do homem mais velho do Brasil. Longeva, cuidava-se paranoicamente todos os dias, bem como rezava com regularidade para que seu Jacinto descansasse. Era a chance - a única - de ter sucesso. Assumiria o posto com honra e responsabilidade. Na primeira entrevista para a rádio local, pareceria lamentosa por ocupar o lugar do velhinho querido e se mostraria doce e madura.
294/365
Nívea

Gosto de sucos. Resolvi aderir à filosofia frutariana. Comprei um juicer potente pela TV e agora me sinto mais leve e saudável. Me mudei para o interior. Na casinha que aluguei, fiz uma horta e um pomar. Sim, estou mais leve e saudável. Minha pele anda esticadinha e reluzente. Pena não ter uma balança pelas redondezas. Até espelho aqui é difícil. Chatos só os mosquitos. Saudades de um McChedar.

293/365
Cintia

Uma tristeza que não sabia de onde vinha. Fez brigadeiro e assistiu a doze filmes argentinos, com um breve intervalo para o xixi.

292/365
Leocácia
 
Aproveitou as férias para fazer um curso de secretária e outro de segurança. Um emendado no outro. Louca pra largar os serviços gerais. Não tinha saco, mas lembrava que já havia sido bem caprichosa, quando a empresa ainda usava detergentes de boa qualidade. Lamentava as unhas sempre mal feitas, esmalte descascando. Não! Formou-se a melhor secretária da turma. E, não fosse a Layde, sua amiga igualmente desestimulada com a limpeza, teria sido a primeira da turma de segurança também. Mas as duas estavam bem, muito bem. Em breve, nada de baixar cabeça pra encarregado ou pra usuário fresco e reclamão de banheiro ou copa.

18 outubro 2012

291/365
Zaira

Quero morar no Espírito Santo, na beira do mar. Quero vento.


290/365
Susie

Entre um músculo saltado e outro do abdomem, havia um piercing com um pendente brilhante ostentando a letra J. O short - repetido ao longo da semana - tinha franjas que ele mesmo coseu e penteava eventualmente. Os pelos do peito largo raspava com gilete. Preferia os aparelhos antigos, daqueles que trocam lâmina, e sabão espumoso. Blusas ou tops, sempre coloridos. Adolescente, já tinha descoberto um orifício do esqueleto onde podia guardar pênis e testículos. Passava por uma mulher grande e sem seios. Respondia por Susie. O J do piercing, que podia ser Joaquim, João, Juvenal, Jonas ou Jefferson, decepcionava alguns e assustava outros: era a representação não pecaminosa de Jesus. Susie era uma bicha evangélica.

289/365
Querubina

E a pedido do filho, respeitado chefe do tráfico de drogas da comunidade do Açaí, ainda sem documentos, simulou um registro de nascimento com ano posterior. E o marmanjo, com seus vinte e poucos anos, passou a portar RG original que lhe atestava quinze. Na delegacia, na hora do registro, o funcionário perguntou: "tão novinho e com barba na cara, rapaz?". Dona Querubina se adiantou: "é um menino precoce".

15 outubro 2012

288/365
Lenice
 
Seguiu, a duras penas, o conselho de seu mentor de que não deveria queimar cartuchos enquanto não estivesse estabelecida no mercado. Sabia-se talentosa, sempre soube. Tentou até, por vezes, não parecer arrogante. E também, por vezes, tocou o foda-se. Que a julgassem arrogante, pretensiosa, cheia de si, não importava. Sabia exatamente o que tinha feito até ali e esperou até o último dia possível para se inscrever no prêmio. Foi selecionada. Já está entre os três melhores publicitários do Brasil. E vai se sagrar vencedora em breve. Sabe disso. Trabalhou pra isso. Merece cada centavo do prêmio, cada afago babaca e até aquele troféuzinho frágil - tanto quanto o sucesso.

14 outubro 2012

287/365
Kelly

Não podia ter mais do que doze anos na aparência - como conseguira aquilo? - e não parava de surpreender seu interlocutor. Na última pergunta, deixou-o esperar gagueira, falta de nexo ou embaraço. Fez uma longa pausa e respondeu impassível e eficiente. Fria, como era preciso. Era jovem e servia para o cargo, mas em pouco tempo aquilo seria pouco para ela. Coerentemente ambiciosa.
286/365
Juliane

Cruzou as pernas bronzeadas. Elas tinham brilho e exalavam um cheiro bom. A orquídea no tornozelo conversava com o esmalte pink das unhas. Obviamente usava shorts ou saias e sandálias muito enfeitadas. Eram pernas jovens, assim como os cabelos, muito negros. Longos, com ondulações naturais e disformes. E só isso: pernas e cabelos. Todo o resto - chegava a ser incrível - era flácido e antigo, velho, enrugado.

12 outubro 2012

285/365
Érica

Minha primeira impressão sobre o Julião foi de que ele era um bobão, largado, meio sujinho, sem noção e sem amigos. Nem quis me aproximar. Mas de tanto olhar, observar - por que ele me chamou tanto a atenção? -, acho que estou com ideia fixa. Vou à aula só para vê-lo. Até o Emanoel, professor de matemática gato, perdeu a graça. Penso no bobo do Julião toda hora. Aqueles cabelos assanhados, a magreza, as espinhas, o aparelho. E ele nem sabe que eu existo.

284/365
Helenira

Quando recebeu o ordenado, entrou numa dúvida. Merecia uma TV de LCD, finalmente, sim. E merecia, também, se ver livre da dívida da financeira (com aquele valor quitaria parte grande do que deve). Pensou, remoeu. Decidiu: deu o dinheiro todo na mão de Antônio, na esperança de terem tudo em dobro, nas cartas, no bicho, nas máquinas.

10 outubro 2012

283/365
Cícera

A colega, casada com uma bicha enrustida, resolveu tirar a hora do cafezinho para lhe contar as loucuras sexuais que passara com o marido na noite anterior. Aproveitou também para narrar com detalhes as grosserias do rapaz, tentando, a todo custo, fazer Cícera acreditar - caso tivesse notado o jeito dele - que o marido era macho, muito macho. Não chorava, deixava meias espalhadas pela casa e não entendia nada de gloss e rímel. Nenhuma paciência com crianças e tinha horror a nadadores que se depilavam. Era inteligente, sim, mas não sensível. Cícera ria por dentro. Cada uma acredita no que quer.

09 outubro 2012

282/365
Arlete

Bastou perder oito quilos pra se ver com a silhueta da Tessália, comprar uma calça da Suelen, fazer um megahair da Olenka, usar um colar da Carminha, os tamancos da Monalisa, a mula manca da Alexia. Passou a rezar pra achar um Jorginho ou um Darkson ou um Iran ou um Leandro. Vive no Divino.

08 outubro 2012

281/365
Morgana

Por menos bruxa que a minha aparência os faça supor que sou, lamento informar: vivo de feitiços, simpatias, magias, ritos secretos e belos.

07 outubro 2012

280/365
Ivana

Os cabelos dela crescem mais rápido do que quaisquer outros; são fortes e cheios, apesar da alimentação deficiente e das quedas. Solta-os quando molhados. Prende fios, espontaneidade e desejos fabulosamente. Atrás dos óculos esconde também o agito, o desassossego. Contraste com saias ou shorts curtos. Costura colchas e fronhas, estuda, faz doces pra engordar a família, cuida do amor, da vida, da casa. Gosta, à distância, de chia, agrião, ovo e sementes de girassol. Usa hidratante todos os dias em que não sente preguiça. Trabalha de sol a sol, mal cuida dos cachos.

279/365
Tainá

Adepta que é da cozinha macrobiótica, da yoga, da meditação tailandesa e, igualmente, do desapego ideológico, resolveu ontem experimentar. Escolheu um show de pagode na Barra Funda. Misturou cerveja, vodca e energético (ou seria guaraná?). Acordou com diarréia ocasionada por um hotdog com milho verde, batata palha e cerca de 200g de maionese.

05 outubro 2012

278/365
Gilmara

- O senhor me paga um almoço?
- Pago. Sente-se aqui comigo.
- Não, não. Eu quero só o almoço.
- Então, sente-se aqui comigo. Me faça companhia. Você mora onde?
- O senhor quer fazer caridade ou comprar minha companhia?
- Quero lhe ajudar, ora.
- Então pague meu almoço.
- Certo, mas sente-se aqui comigo, vamos conversar.
- Não. Minha conversa não está à venda.

04 outubro 2012

277/365
Divina

Não posso ter vergonha de dizer o que mais sinto falta da vida com o Alexandre. Vão me chamar de velha depravada. E daí? Se tem uma coisa boa em envelhecer é poder ser o que a gente é. E meu coração dói de saudade quando fecho os olhos e vejo aqueles braços fortes espancando um bife para o nosso jantar - ótimo cozinheiro caseiro -, quase sem tirar os olhos de mim.

03 outubro 2012

276/365
Wanderluce

Me sentindo a própria Frida, desenhei borboletas no molde de gesso da minha barriga de nove meses. Forcei todas as barras para confirmar a teoria de que gravidez é algo lindo e perfeito. Fingida. Arthur tem hoje três anos. E o que eu faço com esse simulacro de escultura que já não serve pra nada?

02 outubro 2012

275/365
Fátima
 
Temo pela minha reputação. Sempre. Peço desculpas, faço saber dos meus arrependimentos e dúvidas e – falsamente – interrogo sociedades sobre possíveis injustiças nas leituras dos meus atos. Puta merda, como me incomoda e tira o sono alguém pensar sobre mim algo ligeiramente diferente do juízo que eu mesma faço sobre mim. Que diria daqueles que me desprezam? Saber da existência deles quase me abre chagas na pele. Todos me olham. Cultivo esses olhares e desprezos. Pra quê? Talvez porque não tenha amores suficientes para cuidar ou vida que me preencha e lime meu tempo vago.
 
 
274/365
Araci
 
É asco o que Araci sente por Ítalo. Mas não pode esquecê-lo. Sonha quase diariamente os sonhos mais sensuais de toda a vida, com ele. Ítalo é um nojentinho contínuo do escritório. Por vezes, lança olhares para ela – olhares que ela não quer decifrar. Pragueja, em silêncio, coisas terríveis ao inseto Ítalo. E ele lhe sorri. Certo dia, a contragosto, recebeu dois pequenos tabletes de doce de bananas, sem qualquer palavra. Forçou um agradecimento entredentes, mas quando Ítalo virou-se jogou as peças no lixo. Por que esses sonhos? – perguntava-se.