28 março 2014


Fábio Pai


O meu olhar fabiano era capaz de ver em Fábio Pai a valiosa segurança. Só para mim ele se dispunha a sorrir na horizontal e me jogava para o alto e me aparava como se eu não pesasse nada. Era só pelo meu olhar que alguém era capaz de ver os olhos brilhantes de Fábio Pai, aquela fagulha que fazia dele um menino crescido e nada mais. Era ele o menino que desejava dividir – tão logo eu crescesse um pouco – as brincadeiras de rua, a bola, o rolimã. Não era a fartura das terras de Sant’Anna e não eram as ancas de minha mãe: era eu o motivo da alegria inteira de Fábio Pai. Pra ele, eu não pesava nada.

#reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão

25 março 2014

Chata Maonela


O riso de Manoela era assim, largo, radiante, chato, incômodo e parecia exagerado, sempre. Porque quando ria eu não via qualquer graça na piada ou situação. Peguei abuso de Manoela antes mesmo de ela abrir a boca para dizer "prazer, Manoela". Prima do meu melhor amigo, queridíssima da família, bonita e boa anfitriã. Era jovem e marceneira - já pensou? - e eu achei isso interessantíssimo. Mas, céus, como era chata. Todos a adoravam. Oferecia bons vinhos e quitutes que ela mesma fazia. Decorara um ap bacaninha e agradável. Dava caronas, emprestava dinheiro, fazia trabalhos sociais, era preocupada com o meio ambiente, focada, competente, elegante, cheirosa, sem preconceitos ou vícios. Um abuso de pessoa, impertinente e enjoativa. E os amigos me empurrando pra ela. Cansei de Maonela a ponto de querer deixa-la falando sozinha ou segurando sozinha o seu copo com dedos alongados e unhas verdes, de modo sexy. Assim, bem chata e insuportável. Sozinha, porque não me merece.


#reveza2x2 - conto de Liana Aragão - ilustração de Solange Pereira Pinto

21 março 2014


O fim do verão


Já não era tempo de futebol nem de pipas. O verão estava acabando em Sant’Anna. As aulas do Colégio Estadual Dr. Eusébio Vila Panera já não tinham a rua como concorrência. Bibiu aproveitou o domingo como pôde, providenciando os deveres de matemática logo na sexta à tarde. Na rua, ele e outros tantos garotos haviam sido marinheiros, maratonistas, desbravadores, piratas e biólogos. Cada passarinho abatido era minuciosamente dissecado e analisado. O outono estava a caminho e, com ele, as responsabilidades que eles já bem conheciam: visitas à biblioteca, prova de redação, atividades sócio-comunitárias. Do carrinho de rolimã, escondido embaixo da cama, viam pedaços inconfundíveis, com saudade.

#reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão

18 março 2014

Samurai

Sob ipês floridos em Brasília, e como tivesse comigo qualquer intimidade, me contou que seu sonho era transar com um samurai. Não um cara fantasiado, como fetiche ou montagem mal acabada de produtos de sex shop. Não. Ela queria um samurai real. Um super homem que, em seu devaneio, além de mascarado, fosse ágil, impávido, frio, objetivo. E, ainda assim, capaz de proporcionar prazer tântrico, como se ela soubesse o que é isso. Queria olhos orientais em moldura de pano preto, sem roupa e com decisão. Ou raiva, até. O cabo da katana à mostra, pescoço rijo. Contou sem motivo ou como se eu conhecesse meia dúzias de caras nessas condições, digamos, profissionais. Imagino que se via sob cerejeiras. Contou como se fosse eu um amigo ou um desconhecido realizador de sonhos.



#reveza2x2 - conto de Liana Aragão - ilustração de Solange Pereira Pinto

17 março 2014


Patins


Lunaelka e Gesibelle acordaram pra brilhar. Tão sincronizadas quanto saíram da cama e tomaram café com tapioca, patinaram no parque naquela sexta-feira. Era véspera dia de folga numa cidade apática do interior do Brasil, e as gêmeas repetiam movimentos ensaiados, enchendo o dia de graça e perplexidade. Valdimiro se admirou da visão duplicada, confuso e amuado. Era um show de beleza e destreza, logo no dia pacato em que resolvera aprender a subir nas oito rodas.
#reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão

11 março 2014

Gosto de manga

Nasceu em Nova Viçosa em data diferente do que diziam seus papéis. Infância de ajudar o pai no roçado, cuidar dos irmãos mais novos e rezar. Na adolescência, conheceu Idalina, que subia nas árvores como soim, chupava manga trepada nas galhas mais inalcançáveis e apanhava do pai como um menino. Quis levá-la. Ergueu um casebre no terreno do pai, bem perto da mangueira, plantou milho, feijão e mandioca. Chupou Idalina inteira. Fiapo nos dentes. Casaram na igreja, com missa e festa. Tiveram três meninas e Idalina morreu, numa noite estranha, com febre e vômito preto. Com raiva de deus, derrubou a mangueira, trancou a casa e entregou as filhas pras madrinhas. Na rodoviária, diante dos carros e buzinas e cores confusas de Salvador, se viu só. Trabalhou. Conheceu Rosana, cujo beijo lembrou o gosto de manga da boca de Idalina.


#reveza2x2 - conto de Liana Aragão - ilustração de Solange Pereira Pinto

07 março 2014

Mariela

Trouxe uma bolsa, seis figos, uma máquina de escrever, dois livros. Disse que não demoraria: "só até me organizar". Achei que os cabelos desgrenhados, a alça da blusa caindo e algo mais em sua figura não me deixavam alternativa: ela ficaria uma eternidade. Perguntou se podia pegar emprestados uns papéis, agitada. Começaria a escrever ali, simultaneamente à sua própria mudança? Não seria bom passear pelo apartamento, conhecer o meu microcosmo, vasculhar armários, entender banheiro e cozinha? Duvido que me daria ouvidos se eu mencionasse. Calei e sentei no sofá, observando aquele ser que não terminava nunca o mesmo cigarro e parecia suja, mas manejava com destreza e higiene o seu instrumento. Era poetiza e até ficava bonita quando batia os dedos na máquina dura; a folha muito branca tinha letrinhas soltas ou palavras muito curtas. Por que não usava computador? Pois Mariela ficou e está aqui até hoje. A mesma máquina dura, os mesmos papéis pedidos de empréstimo. Largou o cigarro, comprou mais de mil livros e pôs cortinas na sala pra não ver São Paulo. Os figos que trouxera joguei fora na semana seguinte, quando ela, tão entretida, não me dissera que detestava frutas. Quando largava o trabalho, lembrava-se de mim e víamos filmes juntos. E vemos filmes juntos. Todas as noites desde então.


 

#reveza2x2 - conto de Liana Aragão - ilustração de Solange Pereira Pinto

06 março 2014



Pipoca

No momento de uma entrada dura.
– Tu é burro.
– Tá doido, é? Sou esperto.
– Tu é só arrogância.
– Oxe, eu tenho culpa se tu não joga nada, não aguenta nada?
– Que não aguenta nada o quê, rapaz? Tu que é fraco.
– Imbecil.
– Arrogante! Cabelim de pipoca.
– Tu é um merda.
– Cabelim de pipoca.
Juntaram-se os outros ao coro de Luiz.
– Pipoca! Pipoca! Pipoca!
– Então ninguém joga mais, seus filhos da puta. Pronto, acabou.
Os outros calaram. Cochicharam entre si.
– Peraí, Bibiu. Futebol é assim mesmo, cara. – Luiz lhe dava tapinhas nas costas.
Bibiu só olhava.

– Bora jogar. Tu é brilhante, cara.

#reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão