29 abril 2014

João Cesário em festa

Não considerava fácil ter sob seus cuidados e caprichos a menina mais bonita do lugar. João Cesário nem conseguia curtir o rebolado da dona das pernas de boneca, naquela noite com um short branco, brincos dourados grandes e disposição. O suor já lhe fazia brilhar no pescoço e realçava os olhos pintados. Ela cantarolava o pagode e João Cesário se concentrava na marmanjada, os outros, os mulatos que ousavam jogar olhares pra ela. Pronto pra qualquer abordagem, resposta a um ato desrespeitoso mínimo que fosse, desejador de sangue. João Cesário em festa. E fúria.


#reveza2x2 - conto de Liana Aragão - ilustração de Solange Pereira Pinto

26 abril 2014


Luiz

Na sala de TV com a esposa e os quatro filhos, muitos anos depois, Luiz sentiu o cheiro de Arnold. Com um vento que veio do corredor, sabe-se lá, ou uma mistura da pipoca com o tapete empoeirado. Mas era o cheiro de Arnold. O cheiro fugidio e grosseiro do amigo. Despregou-se do filme para visitar suas lembranças. Faculdade de Direito, formatura, escritório e o futuro que não aconteceu. Como teria sido? O que teriam vivido se não tivessem vivido aquela discussão idiota? Amava Lidu e os meninos, todos eles, mas não queria Santos todos os verões e não queria o escritório na Paulista. Não se sentia homem o bastante. Sentia falta de Arnold e vontade de dormir. Lidu lhe tocou o ombro e, próxima ao seu ouvido, sussurrou algo sobre o vestido da personagem. Respondeu com "uhum" habitual.

#reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão

24 abril 2014

Bolo com chá

Aluísio ligou por causa do outono. Sempre cheio de explicações que não me interessam nem um pouco, falou de recolhimento, de quaresma, de espiritualidade e yoga. Perguntou sem qualquer convicção se eu lhe faria um bolo com chá, caso resolvesse baixar em Goiânia. E eu devolvi galhofeira: "de disco voador? Falou baixar... deve ser baixar de disco voador, né? Hein? Rá rá rá. Hein, Aluísio?". Mas esse povo não se zanga. Costuma olhar pra gente de cima porque eles são mesmo mais elevados, evoluídos. Deu-se ao trabalho de rir, mas nada comentou. Falou que sentia saudades de mim e que apesar dos anos e de todo um trabalho em busca de superação a saudade permanecia. Perguntou se eu o receberia, se seríamos capazes de conversar sem brigas ou sexo. Guardei meu riso e, respeitosamente, disse "apareça qualquer dia". Quem sabe ele esquece. Quem sabe um bolo com chá.



#reveza2x2 - conto de Liana Aragão - ilustração de Solange Pereira Pinto

19 abril 2014

Mágico



Não era difícil se apaixonar pela inocente Gisela. Ela não demonstrava qualquer interesse por homens, amores ou amigos - nem por mim -, mas seus olhos brilhavam no circo. Naquela noite de abril, em São José, pude desfrutar do momento mais doce da vida dela. O mágico engraçado, com peruca de flores e olhos egípcios, chamou minha garota para auxiliá-lo. Sob o holofote, Gisela se deslocou soberana, plena de alegria e sabor. No picadeiro, foi eficiente. Ouvia com a mesma atenção e pureza as ordens e os comandos mágicos que mais pareciam impropérios. Não havia alegria maior pra ela. Não havia nada mais bonito pra mim. Enchi-me de coragem e beijei Gisela na boca logo que pude.

#reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão

11 abril 2014


Irina de Ernesto


Então o argentino Ernesto conheceu uma russa firme. Não loira, ruiva. Respeitável jornalista, esperta e elegante sobre a dona de casa eficiente sobre uma mulherzinha dengosa que andava de calcinha em casa. Irina era uma Irina dentro de outra Irina e de outras – era todas. E se orgulhava disso. Russa firme que vivia sua feminilidade com frescor, fugida de teorias que estudara na faculdade. Não gastaram tempo com teorias. Ele a tomou pelas mãos, impressionado pelo riso dela – que não chegava a ser bonita. Nos doze dias em Moscou, apareceu no curso duas vezes: uma para se credenciar e uma para tentar em vão resgatar o investimento. Pôs os olhos em Irina. Quis ouvir seus gemidos.

#reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão

08 abril 2014

Ana

Pelo retrovisor, viu que Ana olhava descompromissada para a esquerda,
o pôr-do-sol. Não podia ser ela, aos poucos obtinha a resposta de que
vinha fugindo: não podia ser ela. Jovem demais. Mas era também bonita
demais, esperta e melancólica. Tinha boas respostas para muitas
perguntas; e excelentes perguntas para ele, seu mestre, seu mentor.
Não podia ser, podia? Questionou o passado dela, da mãe dela:
costumava vir a Brasília? E diante do "sim, sim, sim", engolia uma
saliva gélida, enquanto a moça completava, com a inocência que a
situação permitia: "vivia aqui, hospedada na casa da tia Lúcia, no
Cruzeiro". Era ela sim, ainda que não pudesse ser. Chegou até a
lembrar de tia Lúcia e das assadeiras de pão de queijo. E deve ter
dito algo, pois uma boa pergunta surgiu: "como sabe?"






















#reveza2x2 - conto de Liana Aragão - ilustração de Solange Pereira Pinto

04 abril 2014


Gordinha


Tentava ser simpática – e de fato era prestativa –, mas estava tão descuidada que sentiam pena dela. Até quem não queria sentir. No escritório, acabavam por não gostar dela. Não era uma gordinha feliz. Tinha um formato incômodo, o abdome largo e pernas finas. Vivia de dieta. O cabelo era seco e mal cortado. Usava roupas com estampas grandes, feias. O rosto exibia um brilho de suor típico de Manaus e causava nojo. A pele era muito branca e trazia uma camada de cremes considerável. Era torta. Se achava discreta e querida, mas ninguém mais a conhecia: os colegas a ignoravam; os irmãos não viam a menina engraçada e disposta; a mãe não enxergava sua princesinha. Diante do espelho, ela mesma era uma estranha.
#reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão 

01 abril 2014

Wanderlei


Você é chamado por outro nome, lhe puxam os cabelos e dão tapas gratuitos. À noite, com todos os pêlos raspados, você é obrigado a usar roupas sensuais e rebolar - sem saber que era capaz disso -, sob a mira de muitas armas e olhos debochadores. Tonto, você é instruído a se soltar mais e a não chorar. "Sorria, sorria, filho da puta". E você exibe os dentes. Exausto, deixa que lhe enfiem coisas, que lhe belisquem, que chutem suas canelas, caso queiram. Você se vê numa vida inacreditável, respeitável estudante de Direito. De repente tão afeito e esperançoso, reza e clama em silêncio pelos "Direitos Humanos". Um dia vão lhe achar e, se realmente lhe acharem, você será diferente. Talvez até consiga não ser cruel com ninguém.


#reveza2x2 - conto de Liana Aragão - ilustração de Solange Pereira Pinto