28 fevereiro 2014

A mãe do filho de Henrique


Pronto. A dor parou de doer e já lhe puseram um menino nos peitos, melado. Reagiu como se esperava que reagisse, ajeitou a criança, cuidadosa. Era isso? Acabou, afinal? Ali estava o fruto de um amor doentio e incerto? Tão pobre quanto já era, agora tinha um menino – ou menina? nem viu ainda - pra criar. Sem dor física, enfim, e cheia de ordens a seguir: segure assim, pegue por baixo, ofereça o peito. É, podia ter sido uma boa ideia mesmo, ainda que não tivesse sido ideia, ainda que tivesse sido acidente. Um bacuri pra fazê-la rir; pra ela brincar de boneca, lembrando das figuras cabeludas de sabugo de milho que fazia na infância. É, Henrique já tinha três e poderia ensiná-la a dar banho e trocar fraldas. Os olhinhos a olhavam desafiadores. Olhinhos de macho - era um menino, afinal. E ela o cobria de beijos, deixando a meleca branca grudar em seus lábios. Figurinha cabeluda interessante. Cadê o Henrique, hein?


#reveza2x2 - conto de Liana Aragão - ilustração de Solange Pereira Pinto

25 fevereiro 2014

Minha garota

Ela me escreveu uma longa carta à esferográfica. Certamente cuidadosa com o papel poroso que escolheu, meio amarelado, com flores aquareladas nas bordas. Estava pela Europa e lembrou-se de mim. Isso já teria sido suficiente pra minha alegria idiota de menina apaixonada, mas ela não economizou nos mimos. Escreveu que sentia falta das nossas tardes, narrou visitas a museus, praças, restaurantes e que eu adoraria - adorarei - os cafés que ela tem visitado. Na despedida, antes de assinar com sua letrinha miúda, registrou: "beijos estralados". E eu pude mesmo sentir a doçura dos seus lábios nesse afago imaginado. A minha garota, minha ídola, tão longe, preferia gastar saudades comigo do que simplesmente se esbaldar na Itália. Nada mais surreal que minha garota. Nada mais real que uma carta.

#reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão

21 fevereiro 2014

Nando

Uma caixa. Nando deteve-se diante dela. A tampa bem conhecida, pintada com o spray usado pra pichar pilares nas super quadras. Abriu esperando um tesouro. Ingresso de um filme com Stallone, uma fita K7 da Xuxa, fotos, papéis de bala, encartes, panfletos, programa de uma peça que vira, um bilhete do avô, recorte de um jornal da época da Guerra do Golfo. Lembrou-se de como fora feliz três décadas atrás, quando seus pais ainda trocavam beijos. Antes do grande terremoto. Fechou a caixa e decidiu queimá-la.

#reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão

18 fevereiro 2014


João Cesário

Ressabiado. Era o dia dela solteira. Era verão. Ela escolheu uma saia para exibir as pernas de boneca e batom vermelho pro bico. Blusa amarela, rabo de cavalo e pó na cara pra disfarçar o calor. Os óculos escuros refletiam João Cesário à espreita, na rua debaixo, ciumento, que ela fazia questão de não enxergar. A bolsa branca pendurada no braço revezava uma batida no quadril e outra nas pulseiras. Era um desfile, que pedia trilha sonora e plateia, a despeito do sol carioca. Era só o caminho de casa à feira. E João Cesário acompanhava o balanço, com raiva.

#reveza2x2 - conto de Liana Aragão - ilustração de Solange Pereira Pinto

14 fevereiro 2014

Primavera

E para a estação das flores, criará uma estampa colorida, com elementos disformes, líquidos e confusos. É assim a moda-arte-conceitual, afinal, e Jonas está disposto a firmar seu nome, a assinar grandes coleções, ver a si cobiçado, escolhido, apontado. Desenha no ar, onírico. Sim, serão primaveras moles, olhos de camaleão, e expressarão esperança, luz e melancolia. Ao menos é o que diz seu horóscopo: criatividade em flor. Mas a primavera anda longe ainda e Jonas é estudante.


#reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão

11 fevereiro 2014

Armando

Fui um dos primeiros bebês de proveta do Brasil. Nasci em 87. A então jovem Margot me desejou tanto que largou o posto disputado de secretária da SUDENE para se dedicar à maternidade. Meu pai, herdeiro de família nobre paulistana, morreu quando eu tinha dois anos. Com ele, foi toda a tradição e as heranças inventadas. Dona Margot foi a mãe mais amorosa e protetora do universo. Me punha casacos até sob os dias de janeiro carioca. Esticava a pensão como podia. Deixava de comer pra me comprar danoninho e meias novas. Foi tragada pelo câncer de boca quando ainda passava minhas camisas e arrumava minha cama. Hoje, sou incapaz de misturar leite e toddy.


#reveza2x2 - conto de Liana Aragão - ilustração de Solange Pereira Pinto

07 fevereiro 2014



Adeus, Antônio


De tanto dispensar oferendas, dela viam-se as costelas. Lânguida, salamandra pálida num cenário pouco vivo, Elza não queria olhar para trás. Deixou Antônio a observá-la, com uma tristeza que nunca lhe foi apresentada. O corno que construísse a imagem que melhor lhe conviesse. “Me fartei”, concluiu e saiu, tão sexy quanto fosse possível, de vestido de festa roto – após a briga –, invalioso e encorajador. Um adeus eterno.

#reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão

04 fevereiro 2014

Joaquim


Cantarolava um ponto. Juntava as pedrinhas. Pronto. Oferecia. Frente aos dois discípulos corpulentos, molhou um maço de arruda e sacudiu sobre eles. Tudo era bento naquelas cachoeiras de Xangô, cria. Iniciava uma oração, pisava nas vestes, ajeitava as contas. Os discípulos acompanhavam. Criavam, entre si, uma força que para os céticos se traduzia em confiança. Era pai deles. E suas histórias eram tão eruditas quanto fluídas e maleáveis, conforme o curso mole que as pedras desenhavam. Os discípulos ouviam com atenção. Agradeciam.


#reveza2x2 - conto de Liana Aragão - ilustração de Solange Pereira Pinto