19 maio 2013

Aimée

Sabia ser delicada, se quisesse. Se quisesse. Viu Pierre chegar e achou seu nome comum e impronunciável; tantos erres lhe tiravam o ar. Conseguiu cruzar as pernas esboçar um sorriso. Pierre acenou - talvez para ela, talvez para a janela - antes de começar. Em vez de se concentrar no que ele dizia - a tão esperada revisão para a prova de francês - fixou-se na curvatura incerta do nariz, na eloquência do jovem professor, nas variantes da voz. Sentiu vontade de arrotar. Segurou a ponta de um cacho e desenhou, canhota, linhas que poderiam esboçar qualquer besteira. Treinou a pronúncia: Pier-re, Pr-erre. Certa de que não se esquecera de nenhum erre. Malditos erres. Malditos ditos confusos, que a faziam parecer boba. Suspirou e desejou ter motivo para um comentário pós-aula. Pierre lhe tirara o ar.

18 maio 2013

Dia qualquer

Começava a esfriar. Entraram em casa como se fosse um dia qualquer: as chaves dela na banqueta, celular e carteira dele no vão do armário (milimetricamente centrais), a bolsa pendendo pela alça na mesma banqueta, o casaco dele no antebraço e os passos apressados, sincopados, até o quarto em busca de um cabide. Ela tirou os sapatos no corredor. Ele colocou as roupas no cesto e reparou no movimento que os ombros dela fizeram quando, de braços erguidos, prendeu os cabelos. Os seios pareciam ter obtido um contorno que os fez simétricos como nunca foram em posição normal. Ela procurava alguma coisa. Ele lhe contava cada pinta, cada manchinha, pelinhos nos braços, os ossos dos dedos e cotovelos, sentia o chulé dela. E os olhos dela estavam intrigados: onde diabos podia ter deixado o esfoliante? Ele resolveu esperá-la, sereno, até que ela veio e, afinal, lhe dirigiu o olhar. Simulou movimentos trêmulos, exagerada, pra parecer engraçada. Era engraçada, muito engraçada. Estava frio. Tomaram juntos um banho bobo, com sopro de espuma e palmas para espalhar água na cara do outro. Sorriam, gargalhavam. Até que envolveram-se, os dois, numa toalha só - velha e gostosa. Desejaram a eternidade, tal como esse dia qualquer, sem filhos, cachorros, patos, um gostando dos defeitos do outro, o outro aprendendo com um. Lennon cantava baixinho em algum lugar. Era uma da tarde; foram para a cama.

04 maio 2013

Nadine

O andar não poderia ser tão equilibrado; as pernas quase tortas e brancas. Queria ter saído artista, talvez expert em instrumentos musicais. Achava bonito. Não gastava o precioso tempo que tinha com exercícios físicos, discussões ou fofocas, mas era absoluta a certeza de que morreria cedo. Decorara Faroeste Caboclo. Gostava de shorts, sorvete de morango, biografias. Os cabelos sem corte passavam dos ombros - no enquadramento não havia orelhas. A teologia a encantava, ainda que não fizesse segredo de sua agnosticidade. Sem vocação para o excêntrico, passava despercebida aos outros, comia hot-dogs, via filmes numa sala cult, tomava vinho e sorvia coisas. Era o que Gil tinha a dizer sobre a mulher que considerava a mais interessante de todas.