31 julho 2012

212/365
Patrícia

Sou empática. Tenho amigos que compreendo como ninguém. Se têm algum problema, sou a primeira ouvidora que vem às suas cabeças. Escuto, aconselho com cuidado, sem invasão, ou disfarço o conselho com especulações: “será que desse jeito não é melhor?”. Sou boa amiga. Talvez por isso mesmo, estranham se eu tenho um problema. Franzem o cenho, sacodem a cabeça. E, quando gratos e solícitos, fingem que me escutam e lançam de volta uma solução rápida e teoricamente adequada, mas de difícil aplicação; quando ingratos ou indiferentes, murmuram interjeições, olham para a mesa ao lado ou para o cardápio e sugerem outro petisco ou mais bebida. “O frango a passarinho daqui é muito bom”, recomendo.

30 julho 2012

211/365
Rosane

Você é um amontoado de culpa. Se se permite comer algo além de sua rotineira dieta, se pune. Se se destempera, sai da sua calma habitual, reúne contra si provas irrefutáveis de sua incompetência. Sim, é tudo culpa sua. Ao menos na sua leitura, na sua interpretação. Seu nome florido e seus olhos botânicos de nada servem, além de lhe imprimir um sentimento de não merecimento: justo eu fui nascer assim tão naturalmente bonita? Mas nada que dure muito. Também a culpa lhe impõe a certeza contraditória: ninguém me admira, você pensa.

29 julho 2012

210/365
Bubba

Tem algo errado aqui. Não sei contar, mas tenho certeza que pari mais filhinhos do que estes aqui. Cadê o marrom? Ah, está ali. Mas tem algo errado, sinto falta de bebês. Minha prole não está completa. Terá sido aquele casal que veio ontem? Ou aquela garota? Estão levando meus filhinhos.

28 julho 2012

209/365
Letícia

Minha mãe trabalha na peixaria. Ela limpa peixes para as pessoas comprar. Ela tem olhos grandes e um sinal perto da bochecha. Não, não é perto, é na bochecha mesmo. Tem um cabelo misturado preto com marrom. É muito linda e iluminada. É bem brava quando está em casa, mas quando telefona é boazinha. Quer saber se está tudo bem, se cheguei da escola e se esquentei meu almoço no micro-ondas. Ela comprou um micro-ondas novo e branquinho. À noitinha ela chega, lê os meus deveres e apaga alguns pra eu fazer de novo. Vemos a novela das empreguetes juntas. E ela vai ralhando de vez em quando porque eu sou um pouco esquecida e bagunceira. Quando ela não traz uns peixes ou camarões, comemos sanduíche, às vezes com refri, às vezes com tang. Tomamos banho e escovamos os dentes. Ela tranca a casa. Ela me diz pra rezar e às vezes eu até esqueço.

27 julho 2012

208/365
Maria Eunice

Hoje completa nove anos. No meio dos lamentos confusos que inundam sua cabeça, igualmente pela nona vez, ela se pergunta onde teria errado. E a única certeza é que, sim, ela o havia ensinado a pedir socorro, a gritar e chamar por ela diante de qualquer situação de perigo. Naquele dia, todavia, ele não chamou. E ela perdeu o filho de dois anos para a água. Ainda vivo, afogando-se, Júlio a olhava nos olhos, tão calado quanto podia. Desafiava o perigo com um silêncio corajoso e doente. Morreu.

26 julho 2012

207/365
Elma

Larguei o cartório, o Danilo e os meus sogros. Por uns meses, morei na casa dos meus pais com Daniel, mas também não foi fácil. Saí da cidade. Em Brasília, montei um buffet, treinei funcionários e consegui fazer dinheiro. Hoje, esses que se julgam minha família mal sabem os números da minha caixa postal e de um celular exclusivo. Daniel sequer pergunta. Somos iguais: puros e livres.

25 julho 2012

206/365
Tâmara

7h15 - apito inconfundível da secretária eletrônica. Mal consegue distinguir uma voz da outra, mas sabe que é a galera da facul. Entre alguns "urrruuu" e "bá bá bá" (de basculante, que é seu apelido) e músicas que ela não foi capaz de identificar: "o nosso Recife é lindo, sua doida. Acorda pra cuspir". Julgou que era melhor levantar, embora continuasse de férias.

24 julho 2012

205/365
Francine

Encontrei um dos filhos dele e expliquei o caso. Ele entendeu como cheguei à conclusão. Meu pai me disse, com todas as letras, um dia: "você não é minha filha". Saiu na TV que o humorista era pai de tanta gente e minha mãe disse, com todas as letras: "minha história com o Chico Anysio é antiga". Juntei as informações. O Bruno me recebeu bem. Disse, com todas as letras, que eu não me preocupasse, pois faríamos um exame e, se o Chico fosse mesmo meu pai, tudo seria providenciado. Fizemos o tal exame, nós dois, num laboratório. Negativo. E o Bruno disse com todas as letras: "que pena". Acho que ele queria que eu fosse irmã dele.

23 julho 2012

204/365
Jocasta

O cansaço é típico e recorrente e, dependendo do caso, intenso e irreversível. A gente cansa o corpo depois de exercícios ou um dia de trabalho. A gente cansa a cabeça. A gente cansa de um perfume, de uma roupa, da moda, da vida, de dogmas, de discursos políticos, de guerra, de livros. Cansa de comer comida com o mesmo tempeiro. Cansa de não ter comida, de ter fome. Cansa de conversa hipócrita, de blablablá, de vozes, de cobranças, de cansar e de viver todo dia. A gente cansa de um barulho, de um filho, de uma criança chata, de bêbados, de bagunça, de doença, de serviço mal feito. A gente cansa de programas de TV. A gente cansa de gente.

22 julho 2012

203/365
Natércia

Um homem idiota me surpreende. Um bom número de circo me deixa de boca aberta. Um jantar maravilhoso, piadas ruins, notícias de desastres terríveis, doentes na família, insistência em erros, amores duradouros. Mas não posso negar: estas férias em Belém foram marcantes por um detalhe: um banheiro químico de rua ultra limpo e cheiroso.

21 julho 2012

202/365
Cleo

Quem chegar à minha idade e disser que não se arrependeu de nada do que fez estará fazendo papel de herói. Querendo aparecer ou coisa do tipo. Eu me arrependo de muita coisa. Uma delas foi de ter surrado a minha filha mais velha por ela ter comido mais da metade do cuscuz sozinha, esquecida dos irmãos. Alguns dias depois ela pegou malária e faleceu. Me arrependi também de ter deixado de conversar com a minha irmã Claudia, que se mudou para Salvador e nunca mais tive notícias dela nem dos da família dela. Me arrependo de ter contado aos policiais onde o Nego Cristiano tinha se escondido, na Ribeira. Nego Cristiano nunca me fizera qualquer mal. A gente se arrepende das coisas grandes, de pequenas coisas, mas se arrepende muitas vezes ao longo da vida. Dias mais tarde, comida pela vergonha, vou me arrepender de ter dado esse depoimento.

20 julho 2012

201/365
Larissa

E a história se repete. Mais uma vez, queridos amigos, vemos o absurdo a que um ser humano pode chegar: um rapaz norteamericano entrou no cinema, na estreia do filme do Batman, atirando. Matou várias pessoas e feriu outras. Já viu esse filme? Um rapaz de 24 anos, doutorando, muito promissor. Mas, como sempre, um solitário. O que leva um jovem a cometer uma atrocidade como esta? A criação? O meio que o cerca? Índole? Hoje, eu, Larissa Quintino, vou conversar com a psicopedagoga Nathaly Manhães, o psiquiatra Vado Pinheiro, o cineasta Newton Almeida e Jacinta Tavares, mãe de um outro jovem assassino. Não perca o 'Nota e Anota' de hoje, às 23h, logo após o programa Roda de Jeová.

19 julho 2012

200/365
Flávia

Meninos são bobos, chatos, idiotas. Só sabem encher o meu saco e me chamar de super mouse e de princesa do inferno. Dizem que sou feia, fedida e burra. Na verdade, eles é que são. Odeio meninos.

18 julho 2012

199/365
Denise

Minha bichinha, nem que eu tenha que trabalhar a semana toda só pra isso e pedir dinheiro pro maior agiota de Salvador, esse Nelson vai ser solto. Minha irmã, se eu tô com ele, se ele não tem mãe e nem pai e nem irmão, sou eu a responsável por ele. Não interessa, não interessa. Você não sabe, ninguém sabe se ele foi violento. Eu sei. E digo que ele não foi. Estou lhe dizendo que vou conseguir pagar essa fiança. Estou lhe dizendo que vou conseguir. Esse homem vai ficar livre de novo.

17 julho 2012

198/365
Candice

Já numa espécie de transe pré parto, escova os longos cabelos. A avó e o pai do menino se desesperam, arrumam sacolas, marcam as contrações no relógio, mas ela sabe exatamente o que fazer e se acalma. A dor é alucinante. Desfaz cada pequeno nó com o pente e alterna com uma escova profissional. São nove horas pela frente, ela sabe, a natureza não lhe reserva surpresas. Tudo segue a mesma regra, assim como nas outras quatro vezes.

16 julho 2012

197/365
Emanuele

Já está tudo certo há muito. O nascimento da Vania vai ser na casa dela. Já comprei uma bola pra rebolar, lona, luzes especiais. Uma doula foi contratada para me acompanhar e a parteira já está avisada. Ela não cobra. Trazer crianças ao mundo é seu dever. Deve ser a única em Brasília. Vania virá na hora que quiser, ouvindo boa música e orações.

15 julho 2012

196/365
Marlise

Puseram-na de licença por perigo de adiantamento de parto. O menino tem pressa. E Marlise está em casa, no entanto, sem descanso: tem mais três homens na sua vida, scrap book a fazer, roupas de bebê a lavar e passar, aulas de inglês a tomar do rapazinho de oito anos. Não, Marlise não consegue ficar quieta. Nem com Juan na barriga, nem depois. Pode-se esperar.

14 julho 2012

195/365
Camila

Ansiosa para ver Antônia, Camila divide a alegria com varizes e inchaços. Seu maior desejo é parar de trabalhar e ficar em casa tomando água de coco, com as pernas para o alto. Já ganhou 16 quilos. O pescoço dói, não tem ânimo para ter relações com Jaime. Desconfia-se de que ela enjoou do cara. Começa a montar o enxoval, mas ir a uma loja lhe custa. A médica disse que não é normal, que ela devia estar mais inteira. Mas que se há de fazer?

13 julho 2012

194/365
Ingrid

São 12 macaquinhos, oito bodies, seis conjuntos de calça e camiseta, shortinhos, bonezinhos, babadores, toalhinhas, fraldas de pano, cueiros, mantas, cobertores, chocalhos, mordedores, sugador nasal, mamadeiras, chupetas. Ainda tem a roupa do batizado. Gastamos menos de 300 dólares com essas compras. O carrinho e o bebê conforto saíram por 400 dólares. E ainda curti com o maridão em Miami. Como, dez anos atrás, um brasileiro classe média acharia que isso seria possível?

12 julho 2012

193/365
Tilde

Depois que passa a bosta da fase do enjoo, começa o pânico. Estou péssima. E o Gustavo sumiu. Eu sabia que não podia confiar nele. O Hugo veio aqui hoje e me disse com todas as letras: assumo teu menino. Balancei. Não é uma má ideia. Não tirei o menino cedo, agora já é perigoso. O Hugo tem emprego, pode me bancar, pagar hospital, ser um bom pai. O moleque nasce, dou um tempo e caio fora. Sumo do mapa.

11 julho 2012

192/365
Nana

Minha gatinha anda estranha, não quer sair, mal humorada. Reclama que os seios estão ultra sensíveis, nem posso enconstar (não posso nem ver). Mal fala comigo, apesar da tagarela que sempre foi, e está engordando. Será depressão?

10 julho 2012

191/365
Gracielli

Me demitiram e eu descobri que estava grávida. Cheguei a conversar com meu encarregado e ele disse que lamentava, mas como ia saber se eu já não estava grávida no dia da demissão? Perdi os meus direitos. Meus pais e meus vizinhos me aconselharam a ficar quieta, que na justiça não dá nada, e procurar outra coisa, enquanto a barriga não aparece. Nas duas primeiras entrevistas, percebi que gostaram de mim. Senti confiança pra falar da gestação e me dei mal. Mas ontem fui esperta: mesmo quando perguntaram se pretendo engravidar disse que nem pensar. Ficaram de me ligar hoje.

09 julho 2012

190/365
Zuleica

E o resultado da Gonadotrofina corionica fração beta foi 28753.8 mUI/mL. Leiga, demorou até achar os valores de referência. Grávidíssima, de quatro a cinco semanas. Sorriu para o papel. Fez planos criativos para contar ao namorado, mas acabou telefonando ali mesmo. Ele se mostrou feliz. Marcou consulta com o obstetra da família e começou automaticamente a enjoar.

08 julho 2012

189/365
Kélvia

Se meu analista me diz pra sorrir diante da bagunça, da desordem, da sujeira, imagino que devo brincar de pega varetas com os palitos espalhados em todo o chão da cozinha pela caixa de Gina que caiu agora. Que lástima.

07 julho 2012

188/365
Damascena

Antes de sair para a faxina de sábado, olha-se nua diante do espelho. Gosta do que vê. É atraente, tem olhos brilhantes, boca miúda, peitos firmes e grandes, cintura fina, quadril largo onde tantos homens já cravaram as mãos para firmar o vai-e-vem que ela tanto gosta. Sente falta do Ronald, do Wilton, do Marcelo, do Robson, do Cleyton, do Jura, do Zé Paulo. Cada um, a seu modo, a tinha feito delirar, gemer, pedir mais. Sorri. Passa a mão nas coxas, no sexo (úmido) e acaricia os peitos. Sente o seu cheiro real, o cheiro da manhã, o cheiro de mulher. Mas ouve carros na rua. Já amanheceu. Desiste de se masturbar e vai à luta.

06 julho 2012

187/365
Lara

Jorge foi embora. Fiquei no nosso apartamento, alugado. Passei dias tentando me livrar da presença dele em objetos, cheiros, lembranças. Joguei fora porta retratos e retratos. Garrafas, roupas velhas. Depressivei-me. Liguei para minha mãe e passei dez dias no interior do Piauí com ela. Chego hoje, jogo sal grosso em cada canto e promovo a limpeza geral. Balde, água sanitária e raiva. Magia: já não há vestígio de Jorge. Mudei a cama de lugar, o guarda roupa, o sofá. Deixei o corredor livre pro frio andar, tirar o morfo, respirar. Sentada, nesta manhã de folga, percebo que dobrar sacos de supermercado me fazem sentir mais dona do meu nariz. E plena no meu lar.

05 julho 2012

186/365
Carol

Um nó na garganta. Não é gripe nem raiva não expressada, é falta de cana. Tomei segunda no aniversário de uma amiga. Terça no Poizé, forrozão. Quarta durante o Boca x Corinthians. E hoje, final da Copa do Brasil, nada. Estou trancada em casa, sem uma latinha sequer, com a chave quebrada na porta, sem luz em Águas Claras, sem internet, celular com bateria por um fio. Nem pra conseguir enxergar o telefone de qualquer chaveiro na lista.

04 julho 2012

185/365
Valéria

Enquanto tempera o frango, Valéria discursa para as colegas, um ano mais novas que ela, Leopoldina e Angela: "no tempo de minha avó, dizia-se para as meninas brancas se casarem com um doutor ou grande produtor rural. No de minha mãe, já na cidade, dizia-se para procurarem um homem rico, formado, empresário, esperto e ambicioso. De preferência médico. Hoje, minha nega, no nosso, essas mesmas meninas riquinhas têm duas opções: ou casam com um filho de político já bem ajustado na vida, que estude medicina, ou com um funcionário público burocrata, que tenha sonhado em ser cardiologista. O cabra pode ser um merda, mas precisa ter pinta de oftalmologista e dinheiro. Essa realidade alagoana não muda nunca".

03 julho 2012

184/365
Abigail

Porque mereço cada segundo deste meu primeiro dia de férias. Do trabalho, ontem, parti para o aeroporto. Amanheci rezando para minha mãe, na beira do mar. Cantei pra ela, joguei flores, agradeci. Aqui, de roupa branca, cabelos soltos, me sinto um pássaro. Sei da minha beleza. Me sinto amada, desejada, plena. Ainda que só. A brisa e o sol me advertem constantemente de quem sou e o que devo fazer neste mundo. Sensação que não se repete no escritório, no trânsito, na lida com os clientes, os parentes, os vizinhos, os amigos, os colegas de dança. Deito e deixo a areia grudar em mim, pra me lembrar que sou feita delas. Grande e complexa, mas miúda e humilde. Que assim seja.

02 julho 2012

183/365
Clotilde

Quando meu amorzinho chega em casa, já tem o jantar posto. Tiro-lhe o casaco, pergunto como foi o dia, sirvo uma cervejinha pra ele relaxar. Enquanto toma banho, pergunto muitas coisas e conto as novidades. Ele confirma ou geme - hum, ã-hã, tá, ok, certo, hmm, uh, ah. Senta-se para assistir ao jornal, trago o charuto. Ele mal diz qualquer coisa, mas tenho certeza que me adora e adora o tratamento que dispenso a ele. Pede um licor depois do charuto, invariavelmente. E, já na cama, sussurro juras de amor. Ultimamente, ele não tem estado disposto. Mas sei esperar.

01 julho 2012

182/365
Lenita

Não tenho outra referência. Queria me firmar, mas só sinto segurança na insegurança. Minha mãe sempre estava onde havia dinheiro. Ou onde ela achava que havia dinheiro. Não conheci meu pai. Minha avó, até morrer, vi três ou quatro vezes. Trocava mais de cidade do que nós. Nasci em São Paulo, moramos em Santos, Búzios, Pirenópolis, Itiquira, Palmas, Rondonópolis, Uberaba, Brasília, Salvador, Belo Horizonte, Vitória, nessa ordem. E, agora, Rio Branco. Estou ganhando pouco, quase nada, longe do meu namorado e minha mãe acha que está tudo bem, que temos que ter o pensamento positivo, que estamos prestes a ganhar muito dinheiro. Estou cansando disso. Quero voltar. Pra onde?