31 janeiro 2014


Café


Fizera café. É certo que se vira sonolento, mas muito mais consumido do que indisciplinado. Perdera mãe, pai e avó sem sofrer tanto. E agora Luzia lhe perguntava se era sono ou gripe. Mulher idiota. Dispensara pão, manteiga ou bolachas. Na cozinha sem vida, uma janela sem vento, deixara o café esquentar o dia.

#reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão

28 janeiro 2014

Molho de chaves

Deitou o violino nas coxas e batucou. Taça de vinho. Roeu mais de doze unhas, coçou a cabeça, riscou fósforos e cadernos. Acendeu um cigarro e quis ouvir a voz dela. Delirava no travesseiro de bolinhas e não tinha forças pra uma punheta. Calçou e descalçou as sandálias muitas vezes, balançou o molho de chaves, prestes a sair. Escreveu uma canção idiota, fez rosquinhas de fumaça no ar. Sentiu pena de si, abriu as cortinas, viu o colorido insuportável, doente. No espelho, viu as próprias costelas. Juntou numa caixa o que lhe trazia dor - até um papelzinho "Júlia". Passou fita gomada. Despacharia pra quem? E como? Não podia sair. Onde estão as minhas chaves? Voltou ao violino, ao vinho e ao cigarro.



#reveza2x2 - conto de Liana Aragão - ilustração de Solange Pereira Pinto

24 janeiro 2014



Esteves

Num barco, olha-se para trás. Viram-se as costas para o horizonte porque é inevitavelmente sabido que aquilo é apenas um horizonte: nada mais se mostra. E o que se vê? Esteves, o meu amor. Delira-se. Vejo-o ora em minhas mãos, ora liberto. Tal como agora, hora em que não há Esteves atrás de mim, me querendo e me desejando. Só no meu passado. E agora? Haveria alguém? Estaria bronzeado ainda? Disposto e sorridente? Cheirando a alfazema, suor ou bolor? Olha-se para si. Só se tem um barco, um horizonte. E é vazio.

 #reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão

21 janeiro 2014

Gentileza

Pra ele bastou. Prostrou-se diante do papel de parede nude do quarto.
- E daí que não vi graça na história, Ron?
- Hm.
- (risos pouco confiantes) Hein, amor? Vem cá, pára de briga, dá um beijinho.
- Chega, Carol.
- Não tô acreditando, Ron.
- Você não se enxerga não? Não vê o tanto que é ridícula? Te falo de uma gentileza... o cara segurou a porta do elevador pra três pessoas que estavam longe... coisa rara hoje em dia... (transtornado) e você não dá a mínima?
- Ah, ridículo é você. Eu ouvi, sorri e pronto. Não tenho comentário a fazer. Nem sei por que enfatiza tanto essa (com voz debochada) “falta de gentileza da humanidade e blá blá blá”.
- Insensível.
- Doente.
- Chata, egoísta.
- Patético. Filhinho da mamãe.
- Filhinho da mamãe não, Carol. Pô, a gentileza hoje em dia...
- (exaltada) Ah, foda-se.




#reveza2x2 - conto de Liana Aragão - ilustração de Solange Pereira Pinto

17 janeiro 2014

Lisbela



A voz era grave demais para pronunciar o próprio nome. Dezessete anos, magra, gigolete pink, blusa de listrinhas cor de rosa, melissa. Os pêlos do rosto, do peito, das pernas arrancava com ódio. Os seios eram um sutiã de enchimento, até quando tivesse dinheiro pra silicone de clínica. Cuidadosa, metódica. Os cabelos lisos eram milimetricamente organizados. Nos lábios, um batom quase imperceptível. Delicado, não queria chamar atenção. Soletrou Lisbela à atendente, que a olhava atenta, sem brilho ou compaixão. Curiosidade, talvez. E a jovem foi altiva, o nariz empinado sobre o bigode raspado: falou o endereço, o telefone, o nome da mãe, do pai, o RG e o signo. Virgem.


                                                    #reveza2x2 - conto de Liana Aragão - ilustração de Solange Pereira Pinto

14 janeiro 2014


Damião

“A gente não sabe mesmo, nunca, com o que vai se deparar”, filosofava Damião ao limpar a bancada. Até aquela hora – e não havia dormido – não sabia bem o que fazer com as pedras que encontrara. Na internet procurou notícia de algum roubo a banco ou casa de gente muito rica. Não eram joias roubadas, concluíra. O primo do vizinho de seu cunhado certa vez dissera que a gente é responsável pelo que cativa. Frase que soava tão óbvia quanto confusa. Agora sentia-se assim, simplesmente, responsável pelas pedras que encontrara num matagal da Maraponga e nada mais. Seguiria paulistano, 37 anos, negro, gordo e porteiro noturno do Edifício Cidade, o maior de Fortaleza. 

                                                   #reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão

10 janeiro 2014



Rua

E tudo o que pouco fazia sentido pra mim, no Ocidente surgiu agressivo, ameaçador e inegociável. Tudo era aparência e aparência era valor. Um desfile constante de sentimentos de grife e arroubos de distinção. Era uma Maria de pantalonas ou uma Luíza de botas de couro ou um André com bolsa a tiracolo. E eu era pequeno e engolido pelo urbano desconexo dos modelos que flutuavam. Eu era saudade de Hea, falta de ar na rua de paralelepípedos não paralelos. Asma de Hea. Sufoco fashion.
                                                       #reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão

07 janeiro 2014

Maldonado Silva, descansado

Fora estagiário de almoxarifado numa fábrica de remédio em Anápolis, mas nunca se interessou por saber nada além do que lhe cabia: prateleira dos papéis de uso, caixa dos copos descartáveis, gaveta de extensões, plugues e tomadas. Seu sonho era ser segurança, mas não sabia onde arrumar tempo e dinheiro pra um curso no SENAC. Era certo que o achavam grande e brigão. Mas se sabia amável e preguiçoso. Mal acordava, a vontade era almoçar e ver desenho. Meninão da mamãe, mas a velha já tinha morrido. A casa quitada acumulava os IPTUs e outras contas. Escolhia o que pagar, às vezes. Durava três meses de zelador no prédio do bairro mais chique, dois de empacotador no mercadinho, quase cinco como atendente de loja de pneu: boa tarde, pneus novos à direita, recauchutados à esquerda, banheiros ali atrás, caixas logo após aquele armário, peças não, só na loja do seu Teodoro, ali em frente, obrigado pela preferência, volte sempre. Voltava pra casa, pras contas, pra preguiça. Economizava as altas calorias ingeridas com coca cola e sorvete. Via propaganda do SENAC na TV. Mudava o canal.


#reveza2x2 - conto de Liana Aragão - ilustração de Solange Pereira Pinto

03 janeiro 2014

Bandeira


Fosse o que fosse, o vento que fizesse, não havia vista melhor, visita melhor. Seu Dioclécio achava que era o dono: acordava e olhava pela janela; cuidava. Há quem diga que foi ele mesmo que a plantou ali, mas ele negava: foram eles, foram eles! – apontava pra cima. Era coisa de E.T., de disco voador, de UFO. Território. Visita ilustre que não havia. Só a bandeira flanava, acalmava o coração de seu Dioclécio na vertigem que cada dia trazia. Era o seu respirar, antes do primeiro copo d’água.


                              #reveza2x2 - ilustração de Solange Pereira Pinto - conto de Liana Aragão

01 janeiro 2014


Isaias de Araxá

Mandaram buscar o araponga em Betim e diz que é formado em Viçosa. Doutor em construção civil. Mas, oh Jorge, – as mãos viradas, não entendia – precisava, hein, Jorge? Ontem o Ciro veio me perguntar se eu tava pensando em aposentar. Vê se tem cabimento o negão aqui parar o serviço, hein, Jorge? – Jorge ri – E eu ri do Ciro também, Jorge. Tá doido, Ciro? Tenho força pra anos e anos ainda, Ciro. Cê é besta, parece que não me conhece. E o araponga arrumadinho vai fazer o quê em obra? Diz que usa até perfume, hein? – Jorge ri – É coisa demais pra minha cabeça. Eu ando é a pé daqui pra Betim. Olha – e bate no bíceps que é forte ainda, mas já denuncia os setenta e poucos –, sou um touro, Jorge, um touro. Nem gripe eu pego. – Funga. Jorge se contém. Do rosto de Isaias vê uma lágrima pingar o ombro. Vira pro outro lado. Amarra a vasilha vazia e suja, com a colher dentro.


#reveza2x2 - conto de Liana Aragão - ilustração de Solange Pereira Pinto