07 março 2014

Mariela

Trouxe uma bolsa, seis figos, uma máquina de escrever, dois livros. Disse que não demoraria: "só até me organizar". Achei que os cabelos desgrenhados, a alça da blusa caindo e algo mais em sua figura não me deixavam alternativa: ela ficaria uma eternidade. Perguntou se podia pegar emprestados uns papéis, agitada. Começaria a escrever ali, simultaneamente à sua própria mudança? Não seria bom passear pelo apartamento, conhecer o meu microcosmo, vasculhar armários, entender banheiro e cozinha? Duvido que me daria ouvidos se eu mencionasse. Calei e sentei no sofá, observando aquele ser que não terminava nunca o mesmo cigarro e parecia suja, mas manejava com destreza e higiene o seu instrumento. Era poetiza e até ficava bonita quando batia os dedos na máquina dura; a folha muito branca tinha letrinhas soltas ou palavras muito curtas. Por que não usava computador? Pois Mariela ficou e está aqui até hoje. A mesma máquina dura, os mesmos papéis pedidos de empréstimo. Largou o cigarro, comprou mais de mil livros e pôs cortinas na sala pra não ver São Paulo. Os figos que trouxera joguei fora na semana seguinte, quando ela, tão entretida, não me dissera que detestava frutas. Quando largava o trabalho, lembrava-se de mim e víamos filmes juntos. E vemos filmes juntos. Todas as noites desde então.


 

#reveza2x2 - conto de Liana Aragão - ilustração de Solange Pereira Pinto

Nenhum comentário: