13 fevereiro 2012


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Tathyanne

Era panela batendo, vizinha cantarolando (até afinada) e esfregando laje. Dez e meia da manhã. Segunda-feira. Lavou o rosto, ajeitou o mega hair. Chupou uma manga. De shortinho e top, sentou no batente da porta com acetona, algodão e esmalte pra retocar as unhas vermelhas. Cabeça longe. Respondeu com cara de nojo pra um ou dois “aêê, gata, que saúde” e entrou pra esquentar o almoço. Tomou banho, comeu, escolheu a calça clara com glitter, juntou as pulseiras do mesmo tom da camisa do uniforme, plataforma branca, rímel, gloss. Revirou-se na frente do espelho. Ajeitou o piercing. Gostou do resultado. Pegou a bolsa e desceu. “Copa/Leme/Botafogooo. Entra aí, princesa”. A mesma cara de nojo. Tirou o chiclete da boca, com um cuidado sensualizado. Cruzou as pernas. Encostou a cabeça na janela e lembrou do baile com o Maicon ontem. Fechou os olhos pintados de azul, sorriu e passou as mãos pelas coxas, lembrando das mãos dele. Até esqueceu o calor.

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Otília

São quarenta e nove anos juntos. Ele já me aprontou tanta coisa, mas eu não guardo mágoa. Certa vez, achando que podia tudo, me arrumei e, antes de ele chegar do serviço, levei as crianças ao parquinho de diversões, ao lado da igreja. Ele foi atrás de mim. Me levou de volta para casa, sem violência. No caminho, apenas disse: parece uma puta com esse batom. Ao chegar em casa, pus os meninos na cama e chorei. Demorei anos para digerir essa culpa. Tive dificuldades para trabalhar fora, pagar meus bordados, minhas coisas. Agora ele está aqui deitado ao meu lado, entubado, mas consciente. Eu lhe conto histórias, falo do passado. O tumor, na próstata, está quase do tamanho de uma laranja, mas não faz parte dos nossos assuntos. Quando narro algo engraçado, como no dia em que ele despejou um balde de água suja e pano de chão na própria cabeça, ele sorri com a boca imóvel e os olhos brilhantes. E me retribui as memórias, as preces e a dedicação com uma lágrima.

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Kátia

Quero anunciar que estou de partida para a Alemanha. Ensaiei. Metade deles sequer sabe que língua se fala por lá. São meus dezesseis primos, nove tios, três sobrinhos, pai, vó. Todos reunidos de novo, com duas panelas de galinha caipira, polenta, arroz, pão de queijo, farinha. Em uma primeira tentativa, elevei a voz, mas foi impossível. Só vovó me olhou e duas primas. Uma delas já sabe da novidade. Não vão entender. Sempre estudei música, mas ninguém foi muito de me apoiar. Com razão. Desde criança, participo de projeto social e toco violino. Mas sempre tive que estudar seriamente e cheguei a fazer cursos de auxiliar de enfermagem e recepcionista para garantir o sustento. Música é coisa de desocupado. Meu pai tentou viver de música na juventude, e até hoje canta muito bem, mas virou exemplo de fracasso. E eu uma reles iludida com esse universo. Mas ontem recebi a notícia de que fui aprovada num teste de bolsa para estudar lá fora. Alegria e aflição. Acho que vou esperar a prece antes do almoço. Vó há de me abençoar.

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