334/365
Morena
Gosta de vender sapatos, principalmente os mais fechados e escuros. Sandálias não caem bem em moças como ela. Usa invariavelmente saias que colam um joelho ao outro e blusas que tampam os ombros. Ao fim do dia, tem as coxas assadas e axilas mal cheirosas. Preparou-se para o fim de semana do louvor, sondou sobre o ônibus até a Esplanada, perguntou quem da igreja estaria lá. Mas ontem à noite o gerente avisou: "não vai ter feriado pra gente não. O Natal está chegando e temos que vender mais". Triste de ter que trabalhar no seu dia, tudo lhe parecia ruim. Com ironia, até o número de mulheres desvirtuosas procurando saltos coloridos aumentou.
333/365
Ignês
É gari há doze anos na linda Curitiba. Cuida da mãe Guilhermina e da tia Felícia. As senhorinhas vivem brigando entre si e lhe torrando a paciência: vai arrumar um marido bom, Ignês. E ela queria mesmo era voltar a estudar para ver se passa no concurso da prefeitura. Dessa vez, para trabalhar em escritório; a rua lhe cansa. Vlado, corretor de imóveis, anda lhe rondando. Já pagou um café a ela só para dizer o quanto têm em comum. Coisa que ela não enxerga e não quer.
30 novembro 2012
28 novembro 2012
332/365
Teca
Foi assustador, mas, enfim, via-se diante de si, tal como era. A culpa foi embora, apesar de ainda se sentir surpreendida com a mulher que a psicanálise lhe apresentou. Mesquinha, impaciente e, sim, bastante racista. Não gostava de discursos politicamente corretos, não tolerava que pessoas nitidamente inferiores lhe dirigissem o que quer que fosse - palavras, conselhos. Saber disso não lhe redimia, principalmente quando fazia o batimento (necessário) entre o que é e o que aprendeu ser bom. Ao menos agora parara de mentir para si.
331/365
Uyara
Quando criança, pedia permissão para a mãe. Na juventude, um padre fez as vezes, quando a mãe faltava. Aos dezoito, a mãe lhe permitiu ir morar com o pai nos EUA. O pai morreu. Casou logo e passou a pedir permissão ao marido, que morreu doze anos depois. Naturalizada, casou-se de novo, afinal precisava de alguém a quem pedir permissão. Adalto, latino como ela, não se sentia confortável em ser tão ostensivamente consultado. Largou dona Uyara. E agora, aos sessenta, ela não consegue ir ao banco pagar contas ou decidir que marca de sabão deve comprar.
Teca
Foi assustador, mas, enfim, via-se diante de si, tal como era. A culpa foi embora, apesar de ainda se sentir surpreendida com a mulher que a psicanálise lhe apresentou. Mesquinha, impaciente e, sim, bastante racista. Não gostava de discursos politicamente corretos, não tolerava que pessoas nitidamente inferiores lhe dirigissem o que quer que fosse - palavras, conselhos. Saber disso não lhe redimia, principalmente quando fazia o batimento (necessário) entre o que é e o que aprendeu ser bom. Ao menos agora parara de mentir para si.
331/365
Uyara
Quando criança, pedia permissão para a mãe. Na juventude, um padre fez as vezes, quando a mãe faltava. Aos dezoito, a mãe lhe permitiu ir morar com o pai nos EUA. O pai morreu. Casou logo e passou a pedir permissão ao marido, que morreu doze anos depois. Naturalizada, casou-se de novo, afinal precisava de alguém a quem pedir permissão. Adalto, latino como ela, não se sentia confortável em ser tão ostensivamente consultado. Largou dona Uyara. E agora, aos sessenta, ela não consegue ir ao banco pagar contas ou decidir que marca de sabão deve comprar.
26 novembro 2012
330/365
Lourdes
Então resolveu que estava assim por amor. Mas como justificar aos outros? Procurou um nome qualquer – Marcos. Nunca existiu um Marcos, mas ela fez existir. Criou um e-mail para ele; escreveu para si mensagens assinadas por ele; comprou um chip para Marcos, da Oi, do qual recebeu muitas ligações. Depois, tempos depois, Marcos sumiu. E ela pôde chorar as pitangas para os amigos e a família. Pobre Lourdes.
Lourdes
Então resolveu que estava assim por amor. Mas como justificar aos outros? Procurou um nome qualquer – Marcos. Nunca existiu um Marcos, mas ela fez existir. Criou um e-mail para ele; escreveu para si mensagens assinadas por ele; comprou um chip para Marcos, da Oi, do qual recebeu muitas ligações. Depois, tempos depois, Marcos sumiu. E ela pôde chorar as pitangas para os amigos e a família. Pobre Lourdes.
25 novembro 2012
329/365
Minerva
Resolveu que o Natal em família seria no seu apartamento no Cruzeiro. Dois quartos, sessenta metros quadrados. Calculou a disposição de cadeiras (terá que pedir duas emprestadas. Festeja o fato de os ausentes não precisarem de espaço físico), mediu a mesa, simulou cenários, árvore, presépio, cantinho de presentes para amigo secreto. Vai caber todo mundo. No cardápio, peru, arroz de nozes, lentilha, farofa com passas e pêssego, vinho, champanhe, doce de mamão verde, panetone, saudade.
328/365
Clarice
Acordou sem preguiça, com um olhar altivo, empinado. Resolveu correr, atleta de fim de semana que é. Fez um bom tempo, tomou suco de clorofila, tomou banho gelado. Fez uma longa lista de compras e foi ao supermercado. Comprou produtos orgânicos. Já em casa, organizou a agenda, limpou a caixa de areia dos gatos, lavou a louça acumulada, passou cera no piso de taco. Um dia produtivo, ativo e, por que não dizer?, alegre. Até Ricardo-pica-grossa ligar.
327/365
Eunice
Quis comprar dois rodos eletrônicos, num site estadunidense. O frete e os impostos o fizeram sair mais caro sete reais do que se comprasse aqui. Pensou. Voltou para uma loja brasileira, em português. Procurou pelos rodos. Nada. Na busca, nada. Ligou para a central de atendimento telefônico: "os últimos em promoção foram vendidos, senhora. Tenho autorização para vender com dez por cento de desconto". Voltou para o site americano, sem contar com o fuso horário. Os rodos já valiam o triplo. Droga. Natal sem rodos novos.
Minerva
Resolveu que o Natal em família seria no seu apartamento no Cruzeiro. Dois quartos, sessenta metros quadrados. Calculou a disposição de cadeiras (terá que pedir duas emprestadas. Festeja o fato de os ausentes não precisarem de espaço físico), mediu a mesa, simulou cenários, árvore, presépio, cantinho de presentes para amigo secreto. Vai caber todo mundo. No cardápio, peru, arroz de nozes, lentilha, farofa com passas e pêssego, vinho, champanhe, doce de mamão verde, panetone, saudade.
328/365
Clarice
Acordou sem preguiça, com um olhar altivo, empinado. Resolveu correr, atleta de fim de semana que é. Fez um bom tempo, tomou suco de clorofila, tomou banho gelado. Fez uma longa lista de compras e foi ao supermercado. Comprou produtos orgânicos. Já em casa, organizou a agenda, limpou a caixa de areia dos gatos, lavou a louça acumulada, passou cera no piso de taco. Um dia produtivo, ativo e, por que não dizer?, alegre. Até Ricardo-pica-grossa ligar.
327/365
Eunice
Quis comprar dois rodos eletrônicos, num site estadunidense. O frete e os impostos o fizeram sair mais caro sete reais do que se comprasse aqui. Pensou. Voltou para uma loja brasileira, em português. Procurou pelos rodos. Nada. Na busca, nada. Ligou para a central de atendimento telefônico: "os últimos em promoção foram vendidos, senhora. Tenho autorização para vender com dez por cento de desconto". Voltou para o site americano, sem contar com o fuso horário. Os rodos já valiam o triplo. Droga. Natal sem rodos novos.
22 novembro 2012
326/365
Joelma
Por 41 semanas, sustentei um menino no ventre e um blog de gravidez e parto humanizados. Quase diariamente, falei de alimentação saudável, homeopatia, peso ideal, doencinhas de grávida, enxoval do bebê, casas de parto, doulas, participação do pai, parto na água, parto em casa, perigos do ultrassom, fraldas de pano, amamentação, yoga, exercícios para a vulva, licença maternidade e tantas outras coisas. Meu blog bombou. Tive dias com mais de mil acessos. Muitos comentários, mães aflitas, pais confusos, futuras grávidas, avós, jornalistas de revistas especializadas, enfim. Agora cansei. Meu filho já tem dois anos e ainda recebo emails com perguntas e crises. Mudei. Depois da cesárea de emergência, virei adepta da alopatia, da fralda descartável e do sono profundo proporcionado pela mamadeira de Nan.
Joelma
Por 41 semanas, sustentei um menino no ventre e um blog de gravidez e parto humanizados. Quase diariamente, falei de alimentação saudável, homeopatia, peso ideal, doencinhas de grávida, enxoval do bebê, casas de parto, doulas, participação do pai, parto na água, parto em casa, perigos do ultrassom, fraldas de pano, amamentação, yoga, exercícios para a vulva, licença maternidade e tantas outras coisas. Meu blog bombou. Tive dias com mais de mil acessos. Muitos comentários, mães aflitas, pais confusos, futuras grávidas, avós, jornalistas de revistas especializadas, enfim. Agora cansei. Meu filho já tem dois anos e ainda recebo emails com perguntas e crises. Mudei. Depois da cesárea de emergência, virei adepta da alopatia, da fralda descartável e do sono profundo proporcionado pela mamadeira de Nan.
21 novembro 2012
325/365
Yamara
É obesa. Detesta ouvir das pessoas que é “gordinha”. Não, é obesa. Sabe disso e não faz dieta, não malha, não toma remédios e não cogita qualquer cirurgia. Não admite para si que não gosta da própria aparência, também não se dá ao trabalho de pensar muito a respeito. E entende que pior do que o olhar penoso ou pilhérico dos outros, as dificuldades de locomoção, a culpa diante de um prato de macarrão – que adora –, a escassês de homens interessados, são as assaduras no meio das coxas, nas axilas e pescoço. Gasta bastante dinheiro com hipogloss. Empatado talvez esteja o calor mortal e constante do Piauí. Planeja morar na Finlândia.
Yamara
É obesa. Detesta ouvir das pessoas que é “gordinha”. Não, é obesa. Sabe disso e não faz dieta, não malha, não toma remédios e não cogita qualquer cirurgia. Não admite para si que não gosta da própria aparência, também não se dá ao trabalho de pensar muito a respeito. E entende que pior do que o olhar penoso ou pilhérico dos outros, as dificuldades de locomoção, a culpa diante de um prato de macarrão – que adora –, a escassês de homens interessados, são as assaduras no meio das coxas, nas axilas e pescoço. Gasta bastante dinheiro com hipogloss. Empatado talvez esteja o calor mortal e constante do Piauí. Planeja morar na Finlândia.
20 novembro 2012
324/365
Oléria
Minha mãe me batizou com o nome de minha avó. Quando vim pra São Caetano, me perguntaram se eu havia sofrido com brincadeiras na escola e eu disse que não - na minha cidade, todo mundo tem nome de pobre.
323/365
Sâmia
Mamãe, você me dá a Polly? Eu quero a Polly e My Little Pony de presente de Natal. E pro Papai Noel, eu vou pedir um patinete. Pro meu pai, vou pedir a casa da Polly. A dinda me dá uma Barbie. Não, não, quero aquela família de ratinhos. E de ano novo quero uma sandalinha de salto prata, com bolsa. Mãe, não esqueça que tenho hidratação do cabelo e unhas pra fazer. Tem que encher o pneu da minha bicileta. Ah, já ia esquecendo: quero um tablet, mas não da Barbie, quero um de verdade.
322/365
Jaciara
É chef. Tem diploma. Gostaria muito de pular as etapas que, dizem, existem, mas não consegue e se frustra. Queria acordar e ter um restaurante de renome, que atendesse apenas reservas. Tem ganas de sofisticação. Pé no chão, dona Adelaide diz, é fundamental. Mas para quê? Jaciara quer ser grande. E logo.
321/365
Liliane
Vivo em Londres. Sou profissional da moda. Gosto de misturar tendências, conheço muita gente, já trabalhei com inúmeros bons estilistas. Posso dizer de mim que sou bem sucedida. Homens e mulheres me desejam. O meu real amor, meu macho, entretanto, está longe de ser aceito na atmosfera que respiro: tem 1,60m, chama-se Juvenal. Mora em Parnaíba-PI. Sinto saudades.
Oléria
Minha mãe me batizou com o nome de minha avó. Quando vim pra São Caetano, me perguntaram se eu havia sofrido com brincadeiras na escola e eu disse que não - na minha cidade, todo mundo tem nome de pobre.
323/365
Sâmia
Mamãe, você me dá a Polly? Eu quero a Polly e My Little Pony de presente de Natal. E pro Papai Noel, eu vou pedir um patinete. Pro meu pai, vou pedir a casa da Polly. A dinda me dá uma Barbie. Não, não, quero aquela família de ratinhos. E de ano novo quero uma sandalinha de salto prata, com bolsa. Mãe, não esqueça que tenho hidratação do cabelo e unhas pra fazer. Tem que encher o pneu da minha bicileta. Ah, já ia esquecendo: quero um tablet, mas não da Barbie, quero um de verdade.
322/365
Jaciara
É chef. Tem diploma. Gostaria muito de pular as etapas que, dizem, existem, mas não consegue e se frustra. Queria acordar e ter um restaurante de renome, que atendesse apenas reservas. Tem ganas de sofisticação. Pé no chão, dona Adelaide diz, é fundamental. Mas para quê? Jaciara quer ser grande. E logo.
321/365
Liliane
Vivo em Londres. Sou profissional da moda. Gosto de misturar tendências, conheço muita gente, já trabalhei com inúmeros bons estilistas. Posso dizer de mim que sou bem sucedida. Homens e mulheres me desejam. O meu real amor, meu macho, entretanto, está longe de ser aceito na atmosfera que respiro: tem 1,60m, chama-se Juvenal. Mora em Parnaíba-PI. Sinto saudades.
16 novembro 2012
320/365
Jaqueline
Pronto, vi o filme do Gonzaga, depois de tanto relutar. E logo vi porque relutei: uma senhora ao meu lado suspirava de cinco em cinco minutos e comentava alguma coisa. Sou nordestina sim, de Forquilha-CE. E odeio ouvir comentários sobre a "coitadice" dos nordestinos. Não nasci no fim do mundo, tudo depende do referencial. Minha cidade é o começo de tudo; minha família e meus amigos são o centro do universo. Não tem coitados na minha terra. Tem gente que sofreu e sofre, sim, mas é igual em São Paulo, em Brasília, em Frankfurt. Não venham, diante de uma cena qualquer, lamentar em suspiros a pobreza nordestina. Antes, vão à puta que o pariu. Tenho orgulho do que sou, como, estou bem certa, cada um dos "cabeça-chata" que dividem a origem comigo.
319/365
Fernanda
Viu Getúlio, viu Juscelino e vários outros. Também viu dona Clotilde e seu Nazareno, juntos. Viu a nega Tereza limpando a casa. Viu os próprios filhos, os filhos de seus irmãos, os amigos dos filhos, todos brincando juntos. Viu bagunça, algazarra, briga de família. Registrou muita coisa. Fotografou casamentos, posses, inaugurações, situações inusitadas. Foi capa de revista. Até ganhou prêmio famoso assinando nome de fotógrafo. É, teve que ser homem. Dona Fernanda se sente feliz e realizada. Mais ainda quando o raciocínio permite saber que viu mais do que fotografou porque é melhor viver do que trabalhar.
Jaqueline
Pronto, vi o filme do Gonzaga, depois de tanto relutar. E logo vi porque relutei: uma senhora ao meu lado suspirava de cinco em cinco minutos e comentava alguma coisa. Sou nordestina sim, de Forquilha-CE. E odeio ouvir comentários sobre a "coitadice" dos nordestinos. Não nasci no fim do mundo, tudo depende do referencial. Minha cidade é o começo de tudo; minha família e meus amigos são o centro do universo. Não tem coitados na minha terra. Tem gente que sofreu e sofre, sim, mas é igual em São Paulo, em Brasília, em Frankfurt. Não venham, diante de uma cena qualquer, lamentar em suspiros a pobreza nordestina. Antes, vão à puta que o pariu. Tenho orgulho do que sou, como, estou bem certa, cada um dos "cabeça-chata" que dividem a origem comigo.
319/365
Fernanda
Viu Getúlio, viu Juscelino e vários outros. Também viu dona Clotilde e seu Nazareno, juntos. Viu a nega Tereza limpando a casa. Viu os próprios filhos, os filhos de seus irmãos, os amigos dos filhos, todos brincando juntos. Viu bagunça, algazarra, briga de família. Registrou muita coisa. Fotografou casamentos, posses, inaugurações, situações inusitadas. Foi capa de revista. Até ganhou prêmio famoso assinando nome de fotógrafo. É, teve que ser homem. Dona Fernanda se sente feliz e realizada. Mais ainda quando o raciocínio permite saber que viu mais do que fotografou porque é melhor viver do que trabalhar.
14 novembro 2012
318/365
Norma
A missa havia acabado. Júlio estava tenso, olhava para Norma sem conseguir concentrar-se em nada. Ela nem notou quando ele, enfim, se aproximou. Sedento, passou a mão pelas nádegas dela e fez parecer acidente. Chamou para um sorvete ou qualquer coisa e ela sorriu. Imaginava aquela mulher em posições obscenas e dona de gestos devassos, sem preguiça qualquer de conhecer cada pedaço de seu corpo, enquanto ela falava da vida, do curso de manicure, dos bordados que fazia pra completar a renda. Júlio assentia com a cabeça, certo de que os flashs que ouvia seriam suficientes para montar uma história crível, caso ela pedisse alguma opinião. O sorvete e os ouvidos falsamente atentos eram o preço. Pagaria a conta integralmente e feliz e gentil. Mas teria aquela mulher nas mãos hoje.
Norma
A missa havia acabado. Júlio estava tenso, olhava para Norma sem conseguir concentrar-se em nada. Ela nem notou quando ele, enfim, se aproximou. Sedento, passou a mão pelas nádegas dela e fez parecer acidente. Chamou para um sorvete ou qualquer coisa e ela sorriu. Imaginava aquela mulher em posições obscenas e dona de gestos devassos, sem preguiça qualquer de conhecer cada pedaço de seu corpo, enquanto ela falava da vida, do curso de manicure, dos bordados que fazia pra completar a renda. Júlio assentia com a cabeça, certo de que os flashs que ouvia seriam suficientes para montar uma história crível, caso ela pedisse alguma opinião. O sorvete e os ouvidos falsamente atentos eram o preço. Pagaria a conta integralmente e feliz e gentil. Mas teria aquela mulher nas mãos hoje.
13 novembro 2012
317/365
Surya
Range os dentes perolados. Nem no sono conecta situações, dados. Discurso e prática isolam-se em pontos bem distintos de seu espaço de raciocínio. Chega a usar um caderno adornado de pedrinhas para enxergar melhor os problemas. Sente-se uma coitada incompreendida, às vezes, sim, e esse deve ser o seu maior pecado. Mas é uma sofrida calejada, dura. Obediente e falsa resignada. Tem história oriental, gosta de ouro e espelhos. Veste-se colorida e bonita. Os olhos, no entanto, por mais pintados, ostentam tristeza e inquietude.
316/365
Gabriela
Já com doze anos, sua diversão é articular estratégias de resgate de senhas. De todos os tipos - cartões de crédito, login de facebook, peixe urbano. Não diz a ninguém. Com boas notas, barganha equipamentos cada vez mais sofisticados ou dinheiro. O pai cede. É discreta, as informações guarda para si, não faz alarde com notícias bombásticas ou segredos. Na relação com os amigos, percebeu ter se tornado mais compreensiva. Sente pena. Não comete crimes. Pesquisa.
Surya
Range os dentes perolados. Nem no sono conecta situações, dados. Discurso e prática isolam-se em pontos bem distintos de seu espaço de raciocínio. Chega a usar um caderno adornado de pedrinhas para enxergar melhor os problemas. Sente-se uma coitada incompreendida, às vezes, sim, e esse deve ser o seu maior pecado. Mas é uma sofrida calejada, dura. Obediente e falsa resignada. Tem história oriental, gosta de ouro e espelhos. Veste-se colorida e bonita. Os olhos, no entanto, por mais pintados, ostentam tristeza e inquietude.
316/365
Gabriela
Já com doze anos, sua diversão é articular estratégias de resgate de senhas. De todos os tipos - cartões de crédito, login de facebook, peixe urbano. Não diz a ninguém. Com boas notas, barganha equipamentos cada vez mais sofisticados ou dinheiro. O pai cede. É discreta, as informações guarda para si, não faz alarde com notícias bombásticas ou segredos. Na relação com os amigos, percebeu ter se tornado mais compreensiva. Sente pena. Não comete crimes. Pesquisa.
11 novembro 2012
315/365
Nura
Era solteira e muito familiar. Doze tias idosas e a mãe, tios muitos, de origem árabe, três irmãos, sete sobrinhos e dois sobrinhos netos. Treze primos homens e seis filhos de primos. Duas famílias próximas a ela, com ao todo onze componentes. Suas relações, aprendizados, fé e discussões políticas eram travadas com essas pessoas, além de um ou outro vizinho ou antigos amigos. Mas foi o filho do primo Leonardo que a fez sentir, mais uma vez, o que ela já julgava ter matado dentro de si: paixão, desejo, tesão. E o menino de dezesseis anos por ela sentia o mesmo. Olhos grandes, corajoso, bonito, vívido e alheio aos estudos. Ela usava saias longas que lhe ressaltavam as curvas volumosas, e deixava os longos cabelos soltos como bordados do rosto onde se destacava um grande nariz. Hoje fez três meses de encontros secretos e ele, homem feito, peludo, barbudo, lhe trouxe bombons. Transaram na área de serviço da fazenda.
Nura
Era solteira e muito familiar. Doze tias idosas e a mãe, tios muitos, de origem árabe, três irmãos, sete sobrinhos e dois sobrinhos netos. Treze primos homens e seis filhos de primos. Duas famílias próximas a ela, com ao todo onze componentes. Suas relações, aprendizados, fé e discussões políticas eram travadas com essas pessoas, além de um ou outro vizinho ou antigos amigos. Mas foi o filho do primo Leonardo que a fez sentir, mais uma vez, o que ela já julgava ter matado dentro de si: paixão, desejo, tesão. E o menino de dezesseis anos por ela sentia o mesmo. Olhos grandes, corajoso, bonito, vívido e alheio aos estudos. Ela usava saias longas que lhe ressaltavam as curvas volumosas, e deixava os longos cabelos soltos como bordados do rosto onde se destacava um grande nariz. Hoje fez três meses de encontros secretos e ele, homem feito, peludo, barbudo, lhe trouxe bombons. Transaram na área de serviço da fazenda.
10 novembro 2012
314/365
Francisca
Devia ter música de fundo quando servem comida na casa da Francisca. O cheiro, a fumaça, é tudo formidável. E dá gosto vê-la comer. Com as duas mãos, segura a ponta de uma costela assada, que pousa acima do arroz branco, com feijão no alecrim e purê de abóbora. Habilidosa, desprende a carne do osso com talher. Os cantos da boca brilham como os olhos. Entre uma mordida e outra, sorri. E a gente sorri de volta. As guarnições são meticulosamente colocadas no garfo e Chica fecha os olhos para começar a mastigação, que é lenta e compassada. O bolo alimentar dança pelas bochechas. Com o mesmo sorriso, intercala o chupar do osso e dos dedos e deixa escapar o típico "hum". Chica enche a própria barriga e a casa de alegria. A gente mal consegue comer diante dela, encantados com os movimentos e a luz.
Francisca
Devia ter música de fundo quando servem comida na casa da Francisca. O cheiro, a fumaça, é tudo formidável. E dá gosto vê-la comer. Com as duas mãos, segura a ponta de uma costela assada, que pousa acima do arroz branco, com feijão no alecrim e purê de abóbora. Habilidosa, desprende a carne do osso com talher. Os cantos da boca brilham como os olhos. Entre uma mordida e outra, sorri. E a gente sorri de volta. As guarnições são meticulosamente colocadas no garfo e Chica fecha os olhos para começar a mastigação, que é lenta e compassada. O bolo alimentar dança pelas bochechas. Com o mesmo sorriso, intercala o chupar do osso e dos dedos e deixa escapar o típico "hum". Chica enche a própria barriga e a casa de alegria. A gente mal consegue comer diante dela, encantados com os movimentos e a luz.
09 novembro 2012
313/365
Lílian
Quero a cabeça dela. O quê? Isso mesmo que você ouviu. Não dá, ela é a melhor baterista do Brasil, minha amiga. Mas eu não tolero ela fazendo back vocal quando não é hora de back vocal. Ah, esquece isso. Nem pensar. A Kat é ótima. Ela me atrapalha e ainda quer aparecer mais do que todo mundo. Olha, vamos fazer assim: eu tiro o microfone dela, pronto. Tira então essa porra. Ok, resolvido. Mas se eu me virar e sonhar que ela está acompanhando ventrilocamente a música, eu paro tudo e acabo com ela. Céus.
Lílian
Quero a cabeça dela. O quê? Isso mesmo que você ouviu. Não dá, ela é a melhor baterista do Brasil, minha amiga. Mas eu não tolero ela fazendo back vocal quando não é hora de back vocal. Ah, esquece isso. Nem pensar. A Kat é ótima. Ela me atrapalha e ainda quer aparecer mais do que todo mundo. Olha, vamos fazer assim: eu tiro o microfone dela, pronto. Tira então essa porra. Ok, resolvido. Mas se eu me virar e sonhar que ela está acompanhando ventrilocamente a música, eu paro tudo e acabo com ela. Céus.
08 novembro 2012
312/365
Heloísa
Sentiu-se uma personagem cômica atrapalhada de filme ou novela. Lembrou-se disso instantaneamente porque nunca foi atrapalhada, nunca deixou transparecer descontrole de qualquer natureza. Mas, ao ver o Gustavo todo machucado, no corredor do Hospital de Base, tropeçou em outros doentes, derrubou soro e - logo diante dele - apertou o braço recém operado do amigo, ex-marido, tão caloroso e tão crítico. Acidente de moto. Logo diante dele. Conteve-se e esperou a piada do filho da puta. Sentiu-se, enfim, ridícula, em vez de comovida, triste ou solícita. Quase o mandou à merda em resposta às risadinhas.
311/365
Janete
Falta quinta ainda. Uma conspiração do tempo esses feriados na sexta, pois cancelam o forró do Floresta. Porque é sagrado: a gente já sai do serviço arrumada. Quando o movimento está fraco, a gente fica lá fora, só tomando uma cervejinha. Meia noite é direto pra Rodoviária. Mas quando tá bom, a gente fica até as seis da manhã. As meninas todas aqui vão. Todo mundo adora.
Heloísa
Sentiu-se uma personagem cômica atrapalhada de filme ou novela. Lembrou-se disso instantaneamente porque nunca foi atrapalhada, nunca deixou transparecer descontrole de qualquer natureza. Mas, ao ver o Gustavo todo machucado, no corredor do Hospital de Base, tropeçou em outros doentes, derrubou soro e - logo diante dele - apertou o braço recém operado do amigo, ex-marido, tão caloroso e tão crítico. Acidente de moto. Logo diante dele. Conteve-se e esperou a piada do filho da puta. Sentiu-se, enfim, ridícula, em vez de comovida, triste ou solícita. Quase o mandou à merda em resposta às risadinhas.
311/365
Janete
Falta quinta ainda. Uma conspiração do tempo esses feriados na sexta, pois cancelam o forró do Floresta. Porque é sagrado: a gente já sai do serviço arrumada. Quando o movimento está fraco, a gente fica lá fora, só tomando uma cervejinha. Meia noite é direto pra Rodoviária. Mas quando tá bom, a gente fica até as seis da manhã. As meninas todas aqui vão. Todo mundo adora.
06 novembro 2012
310/365
Liduína
Tentou disfarçar, virou o rosto, assobiou uma canção do Lulu. Mas as meninas notaram. O que ela estava fazendo ali? Resolveu segui-las mais uma vez? Péssima atriz. As garotas sentiram pena, pois era bem provável que Liduína quisesse ser uma delas. Não só pena. Desprezo também. Piveta chata. Era 1989 e era bacana sair para festas de rock na casa de alguém ou embaixo do bloco de alguém. Ela era a criancinha da turma, irmã de duas meninas integradas e populares. Não lhe davam conversa. Fumavam cigarro e maconha, bebiam e Lidu pedia permissão aos pais pra descer e seguia todo mundo, com um walkman na mão e vontade de aprender.
Liduína
Tentou disfarçar, virou o rosto, assobiou uma canção do Lulu. Mas as meninas notaram. O que ela estava fazendo ali? Resolveu segui-las mais uma vez? Péssima atriz. As garotas sentiram pena, pois era bem provável que Liduína quisesse ser uma delas. Não só pena. Desprezo também. Piveta chata. Era 1989 e era bacana sair para festas de rock na casa de alguém ou embaixo do bloco de alguém. Ela era a criancinha da turma, irmã de duas meninas integradas e populares. Não lhe davam conversa. Fumavam cigarro e maconha, bebiam e Lidu pedia permissão aos pais pra descer e seguia todo mundo, com um walkman na mão e vontade de aprender.
05 novembro 2012
309/365
Auxiliadora
O trem sacudia e fazia barulhos metalizados e intensos. Assustava. Os bancos eram retos, rígidos. Estava tensa. Minhas costas doíam, o pescoço pedia apoio, talvez cama. Doze horas de ônibus. Agora mais nove de trem. Sacolejos e lágrimas. Preciso ver Juan. É da boca dele que sairá cada motivo, numa justificativa desconsertada e canalha. O Juan é assim. Minhas mãos não pararam de tremer desde ontem.
308/365
Eurídice
Fez o Enem. Achou difícil. Leu e releu questões. Rascunhou, revisou e escreveu uma redação que quase não atingiu o mínimo de linhas. Estudou em escola pública a vida inteira. Boa aluna, representante de sala, referência em Química. Boa articuladora e envolvida com o movimento estudantil. Prova difícil. Não sabe se passa. Não sabe se consegue deixar os pais e professores orgulhosos. Todos torcendo por ela. Resolveu torcer pelo Obama.
Auxiliadora
O trem sacudia e fazia barulhos metalizados e intensos. Assustava. Os bancos eram retos, rígidos. Estava tensa. Minhas costas doíam, o pescoço pedia apoio, talvez cama. Doze horas de ônibus. Agora mais nove de trem. Sacolejos e lágrimas. Preciso ver Juan. É da boca dele que sairá cada motivo, numa justificativa desconsertada e canalha. O Juan é assim. Minhas mãos não pararam de tremer desde ontem.
308/365
Eurídice
Fez o Enem. Achou difícil. Leu e releu questões. Rascunhou, revisou e escreveu uma redação que quase não atingiu o mínimo de linhas. Estudou em escola pública a vida inteira. Boa aluna, representante de sala, referência em Química. Boa articuladora e envolvida com o movimento estudantil. Prova difícil. Não sabe se passa. Não sabe se consegue deixar os pais e professores orgulhosos. Todos torcendo por ela. Resolveu torcer pelo Obama.
03 novembro 2012
307/365
Clair
"Deve ser por causa dos remédios". Foi o que consegui arrumar de desculpas para o comitê de chefes que me cercou após o expediente. Vendi dois pacotes internacionais a preço de dólar, cobrando reais. Assim: os voos custavam mil e sessenta dólares e eu cobrei mil e sessenta reais. Quando informei o equívoco aos clientes, ambos ameaçaram ir ao Procon. Perdi comissão e ainda terei descontos. Isso se não for demitida, pois não bastava errar: nervosa, cutuquei uma espinha na minha testa e, em segundos, me vi sangrando diante da loja lotada. Pedi desculpas. Disse que eram os anticoagulantes. Mas eu não tomo medicamento algum.
Clair
"Deve ser por causa dos remédios". Foi o que consegui arrumar de desculpas para o comitê de chefes que me cercou após o expediente. Vendi dois pacotes internacionais a preço de dólar, cobrando reais. Assim: os voos custavam mil e sessenta dólares e eu cobrei mil e sessenta reais. Quando informei o equívoco aos clientes, ambos ameaçaram ir ao Procon. Perdi comissão e ainda terei descontos. Isso se não for demitida, pois não bastava errar: nervosa, cutuquei uma espinha na minha testa e, em segundos, me vi sangrando diante da loja lotada. Pedi desculpas. Disse que eram os anticoagulantes. Mas eu não tomo medicamento algum.
02 novembro 2012
306/365
Xênia
Mandou fazer uma faixa e amarrou na porta do cemitério. São vinte e oito anos sem seus pais, que morreram juntos, quinze anos sem Gildovan, seu amor, quatro sem Venâncio, seu irmão, e três sem Jussara e Ingrid, melhor amiga e filha. Os vivos são poucos agora. E tão desinteressantes. Comprou crisântemos e velas brancas. Chegou às 5h. Fiel, religiosa e carente.
Xênia
Mandou fazer uma faixa e amarrou na porta do cemitério. São vinte e oito anos sem seus pais, que morreram juntos, quinze anos sem Gildovan, seu amor, quatro sem Venâncio, seu irmão, e três sem Jussara e Ingrid, melhor amiga e filha. Os vivos são poucos agora. E tão desinteressantes. Comprou crisântemos e velas brancas. Chegou às 5h. Fiel, religiosa e carente.
01 novembro 2012
305/365
Soraia
Alheia a toda e qualquer previsão do tempo, quebrou o cofrinho de barro, catou os R$ 63,15, comeu pastel com caldo de cana e gastou tudo no salão. Fez unha com desenhos de zebra, depilação de axilas e buço, sobrancelha, escova para alisar o longo cabelo crespo, chapinha para o acabamento. Choveu muito e forte.
Soraia
Alheia a toda e qualquer previsão do tempo, quebrou o cofrinho de barro, catou os R$ 63,15, comeu pastel com caldo de cana e gastou tudo no salão. Fez unha com desenhos de zebra, depilação de axilas e buço, sobrancelha, escova para alisar o longo cabelo crespo, chapinha para o acabamento. Choveu muito e forte.
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